AS TÁBUAS
Quando resolvi construir a casa em que moro atualmente, tive muita dificuldade para arranjar pedreiros de São José dos Campos. A casa seria
edificada na zona rural da cidade o que implicaria um tempo enorme de deslocamento dos pedreiros da cidade até o local da construção e outro tanto para retorno à cidade, além do que o preço da mão de obra aumentaria muito. Procurei na região onde construiria e não consegui ninguém que desse cabo da empreitada. Eu dispunha de pouco tempo para acompanhar o andamento dos trabalhos, morava em Jacareí nessa ocasião e trabalhava em Taubaté. Bem, a situação estava um tanto complicada. Comentava essas dificuldades que estava encontrando com um amigo de trabalho que possuía uma casa de praia em Ubatuba. Um dia ele me sugeriu contratatar um pessoal de Ubatuba que ele conhecia e que talvez
concordasse em vir para São José para fazer esse
trabalho. Gostei dessa idéia e marcamos uma reunião num final de semana em Ubatuba e ele me apresentou o pessoal, eu levei o projeto da construção e terminamos por fechar o preço e combinar a data de início da obra.
No domingo de Carnaval de 1999 voltei a Ubatuba para levar o pessoal para São José dos Campos.
Eram quatro, O Eraldo chefe do grupo, seu irmão Rogério. O Marcos e o Neguinho.O Eraldo e o Marcos eram os pedreiros. O Rogério e o Neguinho seus ajudantes. Cheguei aqui por volta de nove horas da noite debaixo de uma chuva forte que nos acompanhou por toda a viagem.
Acomodei o pessoal numa edícula que tinha e que seria demolida e na segunda feira sai com o Eraldo para comprar materiais diversos afim de montar um acampamento de construção. A primeira semana de trabalho se resumiu na montagem do acampamento e na demolição da edícula.
Tudo estava se ajeitando. Providenciei chuveiro, fogão e finalmente os trabalhos foram iniciados.
Eles ficavam aqui por um fim de semana e no outro fim de semana eles retornavam para Ubatuba para ficarem com suas famílias . O trabalho seguia conforme o planejado, sob a supervisão técnica de meu filho mais velho que estava se formando em Engenharia Civil. Por vezes o Eraldo me ligava pedindo que eu antecipasse parte do pagamento da semana fazendo um depósito em sua conta bancária de Ubatuba afim de atender necessidades de sua mulher. Prontamente eu o atendia.
Assim fomos levando. Eles formavam um grupo muito alegre. O neguinho tinha um rádio que tocava samba o dia inteiro....Risos...a casa foi construída ao ritmo de samba. Fizeram amizades com o pessoal da região. Trabalhavam sempre contentes e brincando entre eles. O Eraldo e o Rogério eram dois homens muito grandes e fortes. O Eraldo devia ter por volta de 45 a 48 anos e o Rogério bem mais moço...por volta de uns 25. O Marcos, sujeito muito calado, quase não falava, calculo que tinha uns 40 anos no máximo. O Neguinho...não tinha idéia de sua idade, era bem jovem, muito franzino e o alvo preferido das brincadeiras do Rogério. Me entendia bem com eles, a cada semana a construção tomava forma.
Estávamos em princípios de julho daquele ano.
Percebi que os trabalhos já não corriam na velocidade de antes. Havia um clima de descontentamento entre o grupo. Num domingo cedo eu cheguei e eles ainda não haviam iniciado os trabalhos.Pela primeira vez eu notei visíveis vestígios de bebedeira no Eraldo, no Rogério e no Neguinho.
Por fim o Rogério me contou que eles tinham descoberto, nas redondezas, um forró que se realizava aos sábados e que passaram a freqüentar. Pensei comigo.....bem isso explica a bebedeira deles mas não explica o descontentamento entre eles.
O mês de julho foi assim....fins de semana que eles estavam aqui eram sempre iguais...até que um dia o Rogério me procurou sem que o Eraldo percebesse e me falou.
-Seu Luiz....O Eraldo ficou louco...se apaixonou, não cuida mais dos trabalhos como devia...nos deixa sem orientações e é por esse motivo que o senhor tem percebido que as coisas mudaram.
O Rogério não se conformava com o procedimento do irmão.
Fiquei ouvindo ! Me contou ainda que o Eraldo havia deixado mulher e filhos na Bahia e se aventurado no litoral paulista. Tinha morado em Santos, São Vicente e por fim acabara em Ubatuba. Disse ainda que nessa ocasião ele estava completamente derrotado, sem trabalho, sem lugar para morar, sem dinheiro algum e que conhecera a mulher com a qual estava vivendo. Ela o recolheu e os dois construíram um pequeno barraco onde viviam. Ela fazia salgadinhos para vender nos bares e nas praias e ele cuidou da construção do barraco.
Nesse dia o Rogério, imagino que ainda estava sob efeito de bebidas. Falava...chorava...e contava e contava sobre eles...Ele, bem mais novo, havia acompanhado o irmão da Bahia para São Paulo e que conseguira um emprego num bar de Santos...e que fizera curso de mergulho...e que depois passou a se interessar por tatuagens..
E essa foi a revelação....
Ouvi seu relato. Não tive reação alguma. A casa estava quase pronta
No dia 8 de agosto, daquele ano, demos a obra como encerrada, fizemos o acerto de contas, e nos despedimos.
Voltando para Jacareí pela rodovia Carvalho Pinto...quando passei em frente ao posto de guarda pude ver descendo o morro uma linha de silhuetas que se descolava em direção a Rodovia.
Desciam, lentamente o morro, O Neguinho, O Marcos, O Rogério e o Eraldo acompanhado de uma mulher. Eles iam pegar o ônibus que vinha de Jacareí para São José dos Campos. Iam descer na rodoviária e de lá partiriam para Ubatuba.
Nunca mais tive notícias desse pessoal. Fiquei cuidando dos detalhes finais da construção. Em dezembro me desliguei da fábrica. Me mudei para
a casa em 06 de fevereiro de 2000.
Logo após ter mudado eu organizava meu quintal, separando coisas que iriam para o lixo, coisas que deveria guardar....tinha ainda muito trabalho.
Eis que me deparo com uma tábua....de construção...usada para fazer andaimes....caixilhos...formas de concreto.
Nela havia uma inscrição, feita com esferográfica de tinta azul. Dois corações entrelaçados com o nome Eraldo e o outro com o nome Denise.
Fiquei surpreso com essa descoberta e resolvi separar essa tábua das outras. Mais adiante uma outra tábua, feita com esforágrifica de tinta azul,
a cabeça de um demônio. Um desenho do Rogério, certamente pensando em suas tatuagens.
Essas duas tábuas eu separei e guardei na laje sob o telhado da casa.