A MUDANÇA*

Oficializaram o sim diante a uma plateia repleta, convivas em uma festa numa noite quente de dezembro. O pano descia, e a realidade começava. Foram anos de namoro, conheceram-se no verdor da juventude, colegas de mesma universidade, de cursos diferentes. Ela, uma menina inteligente, bonita, morena de estatura baixa, olhos encantadores. Ele uma incógnita a viver seus conflitos íntimos, a começar pela indecisão de saber o que seria quando crescesse, embora já crescidinho. Curtiam-se nas salas privativas da biblioteca, onde requisitavam uma sala para estudos, ambiente propício para o sexo sem terem que pagar um hotel, apesar dos incômodos do chão duro coberto por jornais. A rotina do prolongado namoro encarregou-se de fazer nítidas as diferenças de temperamentos. Ela, exigente, o queria sempre por perto, dentro dos horários. Ele, relapso quanto ao relógio, habitualmente atrasado. Aquela situação o estrangulava, tendo que inventar desculpas repetidas vezes. Viviam, assim, respirando o mesmo ar, restringindo-se de viverem plenamente. Os demais, só os colegas de serviço. Alguém tinha que pedir "um tempo", ter amigos, conversar outros assuntos. O pedido partiu dele, mal entendido, como se fosse um rompimento. Cedo percebera o erro. Ela sentiu-se mal naquela proposta, e reagiu. O mesmo não ocorreu com ele, para quem precisava, apenas, de reaver amizades, sem interesse em outra pessoa. O drama teria início ali, ou será que apenas antecipava um abismo maior entre eles, já existente, mas despercebido por ambos até então? Quando deu por si, ela já tinha olhos para outro. Solta, arejou os pulmões e respirou outros ares. O que poderia ter sido uma situação normal para pessoas bem resolvidas, para ele não foi. Emagrecera a olhos vistos, perdera a paz interior. Tanto fez, que voltaram. Mas as feridas permaneceram, cicatrizes submersas, e presentes. A vida a dois arrastou-se, foi um inferno. Os ciúmes dele, rancoroso do passado, mal se sustinha a irromper nas discussões. E até na intimidade, a sombra do "outro" o incomodava.

Vagava naquela retrospectiva amarga, enquanto metia as poucas vestes na mala, como um autômato sem direção, os pensamentos atropelados, um misto de derrota e de recomeço incerto, enfim, um ponto final em um enredo já esgotado, sem se importar com o que deixava, livros empoeirados em caixas e alguns na estante. Dele ficaria isso, os livros, provisoriamente, até que arrumasse um local para removê-los. Poderiam ficar em um canto, despercebidos, como sua ausência.

Combinaram assim, ele sairia sem a presença dela, levaria o suficiente para não ficar nu, o mais, móveis, ficariam intactos na casa...Evadiria sem vestígios, ou adeuses. Enterrava-se definitivamente o insepulto cadáver do falido casamento, do qual restaram um álbum de fotografias e uma fita de vídeo cassete na representação de um espetáculo feliz, recordações de um dia que procuraria esquecer.

Debalde a exaustão da convivência sem mais sentido, ainda existia um sentimento de falência no ar. Uma briga íntima no cair da razão, a idéia de que um relacionamento oficializado tinha que perpetuar, de ser para sempre, na tristeza e na alegria, tudo aquilo ainda ecoava nos valores herdados dos pais e avós. Mas nada daquilo servia naqueles momentos, onde a permanência naquela casa chegava ao término, findando qualquer possibilidade de reconciliação. Havia, ainda, que precisar alterar rumos, refazer os passos, recriar caminhos, fazer novas rotinas, reaprender a ser só, quer dizer a assumir realmente a sua solidão, não mais dividi-la com ninguém.

Mesmo com a dor nos acostumamos com ela, fazendo parte dos dias, postergando atitudes, evadindo-se de resoluções, protelando decisões. Porém aquela medida era extrema, definitiva. A mala feita não era apenas uma encenação temporária, como de tantas feitas, de reconciliações posteriores, então vivendo dias prazerosos de inúteis apostas em um futuro melhor. Como a vã possibilidade de reviver o que jaz enterrado, soterrado. Buscava-se o calor do corpo, no sexo, mas encontrava-se a sós ao buscar a alma.

Não foram felizes, iludiram-se. Aliás, não se conheciam, mesmo com anos de namoro e na condição de casados. Enganaram-se . Não havia exatamente culpados, apenas a noção exata de que eram estranhos um com o outro, como navegantes em uma mesma canoa, remando cada qual para um lado, rodopiando em círculos, não indo a lugar algum. Estiveram juntos, coabitando o mesmo teto, mas distantes em objetivos e cumplicidades. Eram alheios nos propósitos. Restava, contudo, uma incômoda sensação, de perda, ou medo do recomeço? Aquilo angustiava, o novo preocupava, exigia coragem de espanar poeiras de velhos conceitos e hábitos.

Sem despedidas, ensaios pronunciados inúmeras vezes, nem sempre em palavras articuladas, mas sentidas, presumidas, em gestos ou insinuações, como a areia da ampulheta caindo, lenta, na marcação de um tempo final. Antes que o ar já rarefeito da convivência desandasse pelo desrespeito, uma atitude, por sofrida que fosse, teria que romper os laços depauperados mas ainda existentes, por tradição ou vã esperança de entendimento. Aquilo, a permanência, doía , mexendo com a autoestima, aprofundando as feridas, arrastando-se interminável como uma sentença perpétua.

Como é difícil o desapego das coisas, mesmo nas condições mais adversas, temos o hábito de nos acomodarmos. O novo assusta, pelo inusitado, por exigir posturas e ações. Reaprender a andar em novos passos pode ser amargo e inseguro pela ousadia que nos cobra. Tudo que nos põe à prova, assusta, espanta velhas ideias sobre tudo e nos coloca em xeque, nos tira do aparente sossego de nossas acomodações, instiga a lutar por uma nova realidade.

Aturdido nessas emoções desencontradas, cumprindo o combinado, a mala sem saudades, sem a presença na despedida, sem azedumes ou queixas, sem murmúrios, nada para segurar as lágrimas, nenhum sorriso que confortasse, nem arrimos para se apoiar, uma estrada nova a ser seguida, vencida, e só, finalmente, consigo mesmo...

Epílogo do esgotamento de um sonho mal vivido, a liberdade assustava ainda mais que as algemas da comodidade incômoda, por paradoxal que seja.

O taxi na porta, o destino e endereços incertos, uma nova empreitada, reivindicando forças que pareciam ausentes, apenas mais uma história mal vivida a ser recomeçada...

*publicado em livro na antologia OS MAIS BELO CONTOS DE AMOR 2017, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, julho de 2017.