Viagem no Tempo...
A fotografia que eu segurava diante de mim mostrava uma garotinha sorridente, com as mãozinhas gorduchas espalmadas no rosto de um rapaz jovem que também sorria. Tinha o tom amarelado, resultante do tempo que corria voraz e não perdoava nem mesmo as fotografias de garotinhas inocentes. Guardei o retrato na agenda, de onde o havia retirado, e enxuguei uma lágrima teimosa que insistia em saltar do canto de meu olho direito. Apesar das dificuldades enfrentadas durante os vinte e quatro anos de relacionamento com o rapaz da foto, sentia falta de meu pai. Mesmo agora, tantos anos após a sua morte, o vazio e a dor eram grandes, e quase me faziam sufocar. Se eu ao menos pudesse voltar no tempo...
Muitos anos antes...
Era uma tarde quente e abafada. A rodoviária estava quase vazia àquele horário, poucos esperavam o próximo ônibus na plataforma. Repentinamente avistei uma figura conhecida subindo as escadas. Gelei. “E se ele me encontrar aqui? Não quero correr o risco de que algum conhecido me veja falando com ele. Provavelmente já está bêbado a essa hora... E veja as roupas que veste... Adora chamar a atenção... Meu ônibus chegou! Ufa! Escapei... Essa foi por pouco...”
Hoje faz mais de dez anos que ele se foi. Morreu jovem, aos 44 anos, vítima de si mesmo: bebeu tanto, durante praticamente toda a vida, até que a cirrose consumiu seu fígado e seu fôlego. Estou na mesma rodoviária, o calor não é tão forte quanto naquele dia, mas ainda assim há poucas pessoas por aqui. Instintivamente olho para a mesma escadaria por onde meu pai subiu alguns anos atrás, meio andrajoso e trôpego. E como se “Alguém” lá em cima lesse meus pensamentos, tenho a impressão de ser atendida e faço uma “viagem” no tempo. Pela escadaria vem um homem, com o mesmo estilo dele, o mesmo tipo de cabelo e de roupas, provavelmente também está bêbado...
Mas a realidade é que viagens no tempo só são possíveis em filmes de ficção. Não é meu pai quem vem ao meu encontro e não tenho a oportunidade de me redimir de minha falta. Ele está morto... Há muitos anos atrás perdi a oportunidade de dizer que o amava apesar de seu gênio difícil e de seu alcoolismo.
Brigamos diversas vezes. E também nos amamos durante toda nossa conturbada coexistência. Sempre que discutíamos, no dia seguinte aparecia ele em casa trazendo uma barra gigande de Laka, meu chocolate favorito. Hoje já nem lembro que gosto tem...
Minhas filhas o conheceram e também o amaram, mas quase já não se lembram dele. Minha neta o adoraria, ele sempre teve muito jeito com crianças, principalmente as bem pequenas.
Olho mais uma vez para o retrato. O homem da escadaria está agora a poucos passos de mim. Meu ônibus chega, mas dessa vez não traz nenhuma sensação de alívio com ele. Olho mais uma vez para o homem, desejando voltar no tempo, poder me aproximar e dizer: “Oi, papai!”, talvez lhe dar um abraço... Talvez molhar a gola de sua camisa com algumas lágrimas e dizer o quanto o amei a vida inteira e o quanto me arrependo por não ter demonstrado...
Perdida em meus devaneios nem noto o ônibus indo embora. O homem se vai também, pela mesma escadaria por onde veio. Perdi meu ônibus, mas perdi algo muito mais importante: perdi uma pessoa que me amava mesmo sabendo que às vezes eu não conseguia amá-lo na mesma medida, mesmo sabendo que às vezes eu sentia vergonha de sua presença ao meu lado... Sim, porque ele sabia...
Derrotada desço as escadas em busca de uma nova passagem. E de um pouco de alívio...