As Faces da Moeda - Memórias de James
Acho que foi num domingo, eu tinha que aproveitar meu dia de folga pra consertar o celeiro que tinha sido destelhado pelo último vendaval. Mas Clara inventou de fazer o tal piquenique. Eu disse que não, que naquele dia não daria, que eu tinha muito serviço, mas ela, mimada que era, sempre conseguia tudo de mim, nunca pude negar nada pra ela. Fui banhar-me, estava sujo, suado pelo serviço debaixo do sol quente, enquanto ela preparava tudo pro tal piquenique. Ela preparou uma cesta enorme, não sei pra quê tudo isso, nós dois não comeríamos nem a metade do tinha lá dentro. Colocou um vestido de festa só pra ir à beira do rio, mas eu não falei nada, porque senão já viu. Aquela vaidade toda era pra comemorar nosso primeiro ano de casados e os três meses da gestação do nosso primogênito.
Apesar de eu não querer, lá fomos nós. Chegamos por volta das três da tarde, acho e nos assentamos embaixo daquela figueira monstruosa que tinha lá. Eu nunca gostei daquela árvore, tinha um ar assustador, a julgar pela imensidão de galhos retorcidos e um emaranhado de cipós que a entrelaçavam por todos os lados. Mas a Clara via algo de transcendental naquele monstro e, como sempre, eu cedi aos seus gostos. Os mosquitos estavam com um apetite voraz naquele dia e eu fui obrigado a improvisar uma fogueira, porque senão nós teríamos que ir embora rapidinho. Fiz a fogueira, Clara já tinha colocado no chão sujo a toalha xadrez que minha mãe nos deu para o enxoval e disposto o aquela comida toda sobre ela. Lanchamos em silêncio. Estava tudo muito bom, ela fez minha torta preferida e o suco de uva estava fresquinho. Após o lanche, fomos caminhar, a contragosto dos mosquitos que insistiam em perturbar. Caminhamos muito, Clara elogiou todos os passarinhos, cheirou cada flor que havia pelo caminho, nossa, aquelas horas pareceram-me eternidades, eu estava cansado, tinha trabalhado muito naquele celeiro. Mas não reclamei, ela estava feliz, então tudo bem. O que me pareceu bom, foi que os enjôos dela haviam desaparecido, ela até deu-me beijos demorados, ai que saudade que estava disso, eu não via a hora de chegar em casa e terminar o que ela começou ali.
Finalmente o sol deu prenúncios de que iria anoitecer e eu a chamei pra irmos embora, porém, ela insistiu que queira ver o anoitecer. Sinceramente, eu não queria mesmo, mas, como sempre, concordei com a Clara. E lá fomos nós até a beira do rio, olhar para o céu. Clara parecia extasiada com as cores da aurora. Confesso que eu também achei um tanto agradável, as nuances coloridas pareciam pinturas feitas em óleo. Clara estava ali, tão absorta naquela contemplação, que acho que nem ouviu o ronco que o rio fez, anunciando a enchente que viria. Quando eu olhei, não havia mais nada a se fazer, era o mundo que estava acabando diante dos meus olhos. Dei um grito, Clara assustou-se e, de súbito, agarramo-nos nos galhos arqueados da figueira, a fim de nos salvarmos do dilúvio, mas foi em vão. A correnteza era deveras forte e nos arrastou. E estendi a mão à Clara, pedindo socorro, mas ela não me alcançou, sei lá, estava preocupada com a própria vida e não me salvou. Eu não sabia nadar e afundei. Uma sensação esmagadora, uma falta de ar terrível, algo imensurável e indescritível. Apaguei, não sei o que houve em seguida, acordei em um lugar estranho, com pessoas desconhecidas pra mim. Onde eu estaria? Onde está Clara. Clara, eu chamava! Clara! Uma sensação sufocante me angustiava, uma falta de ar, muita tosse e eu só queria a Clara. E comecei a gritar o nome dela sem parar. Foi quando tudo rodou e, de repente, eu me vi ali, na casa dos meus sogros ao lado da cama onde Clara dormia.
Eu fiquei tão feliz ao ver que ela estava viva, bem, ao mesmo tempo triste pelo bebê que ela perdera, abracei-a, ela abriu os olhos, mas parecia não me ver. Acordou assustada, com falta de ar, sentia o mesmo que eu. Que estranho, por que ela não me enxergava? Aliás, ninguém parecia me ver. Mas eu não desisti, fiquei ali, ao lado dela. Sofri muito, a falta de ar me sufocava, e todas as vezes que eu tinha uma crise, percebia que ela absorvia os sintomas e passava mal. Mas eu não podia deixá-la.
Passado um ano da enchente, Clara casou-se novamente, com o vizinho do meu sogro, o tal de Harold. Clara criou a filha dele, a Melissa e eles tiveram mais 10 filhos, uma quantia enorme de netos e outra bem grande já de bisnetos. E eu, nessa minha triste sina, continuo por aqui, junto dela. Ela não me vê, mas às vezes sei que ela sente algo de diferente, lembra de mim, se emociona, pensa no filho que iríamos ter. Isso faz com que eu não consiga abandoná-la e siga em frente. Estarei com ela, irei com ela, onde quer que ela vá, por toda a eternidade...
PS: Se você leu esse primeiro, leia o Memórias de Clara também.