Os grilos
É magnifíco contemplar do alto da serra o sol que se vai, deixando a tarde adornada com seu ouro. Da terra brota uma paz inefável, profunda. Ela pode ser sentida em cada pássaro que navega lento, demandando ao ninho que o atrai.
Uma paz que pestaneja a cada mugido que se apaga, deixando em seu lugar os ruídos proprios da tarde. Os grilos e as cigarras se esqueceram de afinar as cordas do seu canto e a tarde inteira parece suspirar o cantar.
Por que essa paz não consegue penetrar minha alma? Porque verdadeiramente me sinto triste. Sinto-me estranho a todos esses seres que bebem a paz do entardecer.
Sinto-me longe. Muito longe. Como se, ao término do dia, não tivesse feito meu dever de casa. Como se não tivesse direito a esse recreio trinantes de grilos e cigarras, recreio de paz. Sabes, Pai-Deus? É como se me tivesses posto de castigo.
Sinto que as pessoas são melhores do que eu. São mais livres. Não têm tantas coisas a fazer como eu tenho. Por isso, talvez, terminam o seu dia e entram no clima da paz da tarde. Não vão à "escola", não têm tarefas para concluir. Tu não as chamas para lhes perguntar coisas, como perguntas a mim. Tu as levas nos teus braços para a paz da noite, à medida que vão dormindo, como quisera eu ser ninado. Comigo começas um diálogo diferente. Aquele velho diálogo. Por isso não gozo de paz. Sinto que contigo estou sempre desperto enquanto tudo dorme. É quando sinto agudamente aquela sensação de deveres pelo meio, ainda por terminar.
Sinto nostalgias de amores, sinto nostalgia da infância. Sinto-me tão longe dela. Especialmente nesta hora do entardecer quando nas casas se prepara a ceia.
Eu te disse que não gozo de paz, mas posso pressenti-la. Sinto-te perto de mim, sinto que não te interessam tanto meus deveres, dores, melancolia, quanto eu mesmo. Eu sinto a tua essência como se, cansado de tua função de mestre durante o dia, quisesses, agora, procurar minha amizade.
A esta hora do entardecer, hora da ave-maria, sinto que tu vens ao encontro do meu cansaço, ao encontro da minha procura e me convidas para te acompanhar na construção da paz da noite, enquanto dentro de mim, na noite, minhas irmãzinhas, minhas fraquezas, anseiam por dormir com o ressonar dos grilos.
Uma lua amarelo-pêssego, vem se arrastando lá dos lados de Goiás, lentamente pelo céu, rumo a um pequeno ninho de estrelas tremulantes em sua constelação.
Senhor dos grilos e das estrelas, que interesse podes ter em meu pedacinho de paz, para que venhas compartilhá-lo comigo? Que é o homem, entre tuas coisas-crianças, para que te fixes nele e o convides a partilhar da tua responsabilidade de velar pela paz?
Como um filho pródigo desgarrado, sigo-te pela noite com os olhos dilatados. Descansaremos, meu Pai, quando despontar a aurora?