O SERMÃO DO CEMITÉRIO

Era uma tarde serena, calma, doirada, aquela em que os missionários quiseram ir, em procissão, ao cemitério.

Lembra-se perfeitamente. Como não se poderia lembrar, se, para sempre, ficou cravada na memória?!

Passara pela igreja de S. Francisco e encontrou-a, ajoelhada ao lado da mãe, orando ao Altíssimo.

Era moreninha, cor de areia, de fino cabelo castanho, repuxado. Dona de voz meiga, que cativara esse rapazinho triste e solitário, que não teve irmã, nem menina que lhe tivesse afecto.

Depois, longe de tudo e de todos, naquele fim do mundo, sem amigos, sem conhecidos, sem poder partilhar emoções e sentimentos, era aquela frágil criança a única que o compreendia e, sem pejo, sem disfarce, sem rebuço, sem dissimulações, irradiava ternura, e gosto em abraça-lo.

Como não a poderia amar, se era tudo que possuía naquele antigo burgo, perdido a trás dos montes?!

Os missionários andavam na cidade. Tinham chegado há oito dias. Houvera pregação: na igreja, na rua e o derradeiro sermão do cemitério. Falaram das tenebrosas chamas do Inferno; da morte que não se cansa de ceifar; das almas perdidas, que vagueiam perdidas pelo mundo; de Lázaro e do homem rico, que vestia púrpura e fino linho.

Aos montões, o povo ajuntava-se, comprimia-se, entre campas, cruzes e carneiros. Era lusco-fusco, quase noite cerrada. De tempo a tempo, rompiam o silêncio, cortado por surdas ave-marias, suspiros doloridos, choros convulsos de catraios contrafeitos, prantos pungidos de velhas, sumidas em negras mantas.

Tudo escutou, tudo ouviu atentamente, mas as acutilantes vozes, proferidas pelos missionários, não conseguiram atingi-lo.

Porque o pensamento borboleteava, com imagens felizes, para a garotinha que deixara deprecando em S. Francisco.

Refulgia-lhe, alegremente, diante dele, o rostozinho aveludado, os olhos ternos, cheios de luz, o cabelo sedoso, que acariciava-lhe afectuosamente a face, quando a visitava, após dia de árduas canseiras.

Naquele tempo, que se perdeu no tempo, só uma criança era capaz de restituir-lhe a felicidade perdida, no desgosto da morte cruel de sua mãe.

Onde estão, agora, os missionários, o povo que chorava, a luz doce do cair da tarde, a menina, que orava ao Santíssimo?!

Tudo desapareceu! Ou quase. Tudo mergulhou no esquecimento! Mas dentro de seu envelhecido peito, que chora de saudade, o passado, revive, aflora, emerge.

Vê, cerrando as pálpebras – como vê! - a remota tarde de Verão, o cemitério em penumbra , a menina orando, recolhida no silêncio da igreja...

Que saudade, do tempo que se perdeu no tempo!

Humberto Pinho da Silva
Enviado por Humberto Pinho da Silva em 04/04/2011
Reeditado em 04/04/2011
Código do texto: T2888708