O Olho Esquerdo do Rei
Pira Pora, pera ai! em,
O Olho Esquerdo do Rei.
Ele gostava muito daquela mesa do canto e era fácil encontrá-lo lá, sozinho, pensando. Naquele dia, logo depois da garôa, analisava as moscas que visitavam periodicamente o seu pastel frio, flácido e meio mordido. Absorto, desligado dos movimentos do entorno, coçava a cabeça vez por outra enquanto tomava um gole da sua Jujú. As pessoas estavam chegando e permanecia a dificuldade para escolher o tema daquele dia. Não que o assunto tivesse que ser assim tão importante, mas simplesmente não conseguia pensar em nada.
Tio Joca se juntou a ele logo que chegou. Como sempre fazia, levantou a mão pedindo um tira gosto e uma birita. O tal do Tio Joca gostava muito de birita. Ficou quieto por um bom tempo, esperando que o companheiro terminasse o que estava fazendo, seja lá o diabo que fosse. Sempre era assim. Os minutos de transe foram breves. Pira Pora olhou fixo para o companheiro, como de praxe, antes de começar o discurso. Já que luz alguma tinha acendido na cachola, sairia qualquer coisa mesmo.
̶Somos moscas, meu amigo! - Exclamou, com apenas um fiozinho de voz . - Não passamos de meros insetos alados. - Concluiu, no mesmo tom, com uma expressão entre o desânimo e o desespero.
Não houve reação alguma por parte de Tio Joca, nem dos demais. Era coisa do ritual ficar em silêncio e fazer um brinde sem palavras. Concordância tácita. Tio Joca sempre concordava.
Aos poucos, a galera do Jujú na Veia - alguns diziam “na Véia”- se juntava em roda da mesa do canto. Era o que acontecia nos finais de tarde de quinta feira. Era uma quinta feira.
Seu Carlos estava satisfeito. O pequeno boteco de esquina cheio mais uma vez. Jujú na Veia estava ficando conhecido e tradicional. O nome era uma homenagem ao “drink” mais apreciado no bairro, feito de cachaça, ervas e adoçado com balas Jujuba, azuis. Fazia muito sucesso e ajudava a regar os encontros com o Pira.
Pira Pora ninguém sabe de onde veio. Diziam que o nome mesmo era Reinaldo, mas sem certeza. Enfim, dava a impressão de que ele sempre estivera ali, que fazia parte do lugar, assim como a velha ponte sobre o riacho e o grande jequitibá no centro da praça. Na verdade, o pessoal não ligava para as origens do Pira. Queriam apenas ouvi-lo. Os cabelos crespos desgrenhados, por vezes sebosos, a barba rala sempre por fazer e os óculos escuros tipo para choque de FNM pareciam fazer parte da aura mística que envolvia o sujeito.
Ton foi um dos últimos a chegar e quase ficou do lado de fora. Era melhor assim. Muito gordo e sempre com calor, ele as vezes atrapalhava a platéia querendo se abanar. Seu apelido , achavam que vinha de Antônio, mas assim não era. O fato é que, certa vez, nas aulas de matemática aprenderam conversão de medidas de peso, aquele negócio com réguas, risquinhos e escalas, descobriram a tonelada e daí saiu o apelido.
Ele já disse alguma coisa? - Perguntou Ton, quase sussurrando, ao pessoal perto da porta.
Disse que somos moscas. - Respondeu o Zezé das Bica, em tom sério, falando baixinho para não atrapalhar.
Hum!!! Já me chamaram de moscão na escola. - Disse Ton, concordando com movimentos de cabeça.
Viu. - Limitou-se Zezé a dizer, fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador na frente dos lábios.
Tudo indicava que Pira Pora falaria logo em seguida. Ele sorveu mais um gole de Jujú e coçou a cabeça novamente. Era o sinal. Um silêncio pesado tomou conta do recinto. As palavras eram esperadas com grande expectativa.
Voamos tal qual estes seres que desprezamos. Quem daqui já não voou? E, quem daqui já não foi desprezado? - Perguntou Pira Pora, voz alta e olhando para todos e para ninguém.
Um zum-zum contido se espalhou entre os ouvintes. Entreolhavam-se com expressão interrogativa. Estavam elaborando, decifrando as palavras do Pira. Aos poucos, um burburinho maior foi se formando. As pessoas começavam a identificar parte do enigma. A parte fácil. Desprezo: quem não tinha sofrido com isso? Olhares se cruzavam, acusadores. Zumbis enterrados há muito saltavam de suas covas rasas para assombrar a platéia, trazendo à tona mágoas quase esquecidas. Ninguém falava com a boca, mas os olhos diziam tudo.
Porém, faltava uma coisinha. Justamente aquele detalhe que Pira Pora esperava para acalorar a conversa.
Pera ai, Pira Pora! - Exclamou o João do açougue. - Vuá, nois não vuemo.
O “pera ai” tradicional era um deleite para Pira Pora. Como uma melodia harmoniosa e hipnotizante, aquelas duas palavras indicavam que o peixe estava fisgado. Só estava faltando o zum-zum. Aquele som característico do murmurinho contido que denunciava o interesse. Alguns instantes de silêncio, de pura expectativa e... Zum-zum... Um sorriso enigmático estampava-se no rosto do orador. O povo queria a verdade. Receberia, mas em doses homeopáticas, como era recomendável.
Falei de forma ficta, meu amigo João. - Disse Pira, apontando para o interlocutor. - Entenderás logo a seguir o sentido de minhas palavras. Sentirás todo o peso da verdade que elas carregam. Pira Pora não tinha certeza de ter empregado o termo estranho de forma correta. De qualquer modo, olhando atentamente através de seus óculos imensos e escuros como breu, não pescou nada de diferente nos rostos a sua frente. Devia ter funcionado... Além do mais, as lágrimas que rolavam de seu olho esquerdo, por baixo dos óculos para choque, eram bem visíveis a esta altura.
A platéia ficou mais atenta. Não entender nada parecia ter o poder de criar um estado meio tórpico, nauseante e cativante ao mesmo tempo.
Eu acho que eu já tive isto, “ficta”. - Falou dona Dulce, conhecida como a mulher que já tivera todas as doenças existentes e algumas nem tanto, como “ficta”, por exemplo.
Deus nos livre. - Disse Zenoveva, fazendo sinal da cruz.
Mas a ficta avoa? - Perguntou Ton, para parecer inteligente.
Boa, sô. - Apoiou o primo Jonas.
É o que mais voa, amigo Ton. - Afirmou Pira Pora, sorrindo, embora as lágrimas continuassem a rolar.
Ah, bom. Achei que era assim mesmo.
Tapinhas de apoio nas costas do gordinho fizeram corar o rosto rechonchudo. As pessoas pareciam estar mais atentas, como Pira Pora gostava. Depois da falação, sairiam dali felizes e satisfeitas, prontas para seguir com suas vidas e retornar na próxima quinta.
Tá bom, a ficta avoa com desprezo. Isto eu entendi bem. Agora, a ficta é a mosca? - Perguntou João, dando uma bebericada na sua Jujú.
- Nada disso, seu João. Eu prestei bem a atenção. A... mosca... tem desprezo... pela... ficta.. que não avoa, ora. - Discordou Mércio, que estava junto ao balcão, cuidando da garrafa.
Acho que cês tão errado. - Disse uma voz fininha, lá de trás da mesa da janela. - É a ficta que despreza a mosca que não avoa. É isto. - Sentenciou dona Naná.
Uma pequena confusão estava se formando. Pira Pora parecia satisfeito com participação de seu público. Ainda mais, percebendo as caras de dó dos mais próximos que viam claramente as lágrimas do orador.
Não é nada disso, gente.- Apartou Joca, em altos brados. - Tem que prestá tenção. Falta gente nesta coisa. Nóis, pô.
Verdade. - Concordou João. - Só não sei se nóis é a ficta ou a mosca.
Assistindo a discussão atentamente, Pira Pora resolveu levantar para acabar com o falatório que estava lhe embaralhando as idéias. Eram tantas possibilidades levantadas que até ele estava ficando confuso. Assim que as pessoas perceberam que ele tinha ficado em pé, o silêncio tomou novamente conta do lugar. “Graças a Deus” pensou Pira Pora. Chegara a hora do pronunciamento final. Algumas pigarreadas protocolares, o copo de Jujú erguido tal qual o ofertório e um golinho para preparar a goela e estava tudo pronto.
Meus caros amigos – olhou para todos os lados, mãos erguidas e expressão séria, lágrimas rolando. – O vôo ficto da mosca desprezada... Opsss... - Uma pausa estratégica teve que ser ativada. Aquela falação tinha causado estrago. “Será que exagerei na Jujú?” pensou.
Antes que o burburinho do zum-zum estivesse de volta, como a desandar o merengue, Pira Pora, apesar de ainda estar meio confuso, retomou o discurso.
Deambulando de lá para cá numa noite de uma dor atróz, percebi com arrepiado impulso, o alar de anjos, anjos, anjos... - uma das moscas do pastel sentou sobre o nariz do orador. Pira. por instantes perdeu o fio. - ...da revelação. - Completou com um largo sorriso, desconectado do que acabara de dizer.
Pira Pora estava feliz por ter encontrado uma palavra salvadora. Onde aquela história iria parar não tinha nenhuma idéia. Pouco importava. Queria mais é que o povo saisse satisfeito, como sempre fazia. Pira realmente se importava com sua platéia. Na maioria da vezes nem mesmo ele entendia o que falava, mas se sentia satisfeito em aliviar o fardo dos outros. E o seu, claro.
Fala da ficta desprezada. - Pediu João, tentando ajudar e já farto das moscas que infestavam seu açougue. - Podemos continuá matando elas?
Pira Pora foi pego de surpresa pelo aparte de João. Ele compreendia a aflição do assistente, já que seu açougue era um mosqueiro só, mas não podia permitir interrupções na hora “H” do seu discurso. Sabia que a culpa era somente dele. Falar aos tropicões não era do seu feitio e dava chance para o azar.. Era imperioso que retomasse as rédeas, a palavra e terminasse logo com aquilo. Afinal, tinha um nome a zelar.
Matem as fictas, matem as moscas, mas, principalmente, matem o desprezo que possa existir em seus corações sofridos. - Gritou Pira Pora a plenos pulmões, rosto molhado, sorriso largo, mãos erguidas.
Gritos de entusiamo começaram a surgir por todos os cantos. João do açougue estava aliviado e aplaudia sem parar. Poderia, enfim, continuar matando moscas. Alguns choravam. Não resistiam em ver a emoção estampada nas lágrimas do brilhante falador. Pira Pora, que adorava o entusiasmo do povo, viu que era hora do arremate.
Voem, voem como as moscas. Elas vão e voltam, elas vão e voltam...e ... estão sempre na mesma m... - Pensou mas não disse. - ...maravilhosa luta pela felicidade. Assim deve ser com cada um de vocês. Procurem a felicidade e vão em paz.
Quando Pira dizia “vão em paz” todos sabiam que era a hora de partir. Foram saindo felizes, chorando e com o coração aliviado. Tinham descoberto a importância das moscas, das fictas e do desprezo. Aos poucos, o Jujú na Veia foi ficando vazio. Pira Pora entornou o final de seu copo de Jujú, satisfeito. Foi até o reservado lavar seu olho de vidro causador da irritação crônica que o fazia lacrimejar constantemente e voltou para se despedir de seu Carlos. Recebeu sua parte da féria e partiu. Certamente, ou quase isto, na próxima quinta-feira estaria de volta para falar ao povo sofrido.