O LUTHIER
O LUTHIER
Naquela hora da noite, Don Juan Carlos era a única alma que caminhava por aquelas ruas madrilenhas. Já era muito tarde, mas realmente tinha necessidade de voltar ao seu atelier para terminar com uma encomenda antes do amanhecer. (Estamos tratando-o como corresponde, “Don” Juan Carlos. “Senhor” é uma palavra um tanto quanto formal e impessoal por aqueles lados hispânicos. Quando dizemos “Don,” é como se estivéssemos chamando-o respeitosamente por “Seu” Juan Carlos).
Fazia mais de quarenta anos que aquele senhor, oriundo de Andaluzia, se dedicava a trabalhar em liuteria. Fazer-se Luthier foi uma profissão que para ele se desenvolveu de forma natural, espontânea porque era neto e filho de famosos Luthiers reconhecidos por toda Espanha.
Um Luthier (palavra de origem francesa) é aquele artesão cuja paixão, dedicação e importantes conhecimentos em organologia o tornam capaz de transformar tábuas de madeiras maciças nos mais distintos instrumentos musicais de cordas como o violão, o cavaquinho, o violino, a guitarra, o bandolim entre outros.
Mas para Don Juan Carlos o último trabalho que estava realizando era um verdadeiro desafio, pois, a construção daquele violão flamenco atenderia a um pedido de um famoso guitarrista espanhol. Este comprador era seu mais fiel e exigente cliente. Para este trabalho, o artesão teve que empregar todo sua maestria para transformar as matérias-primas num violão que fosse capaz de transmitir as sensações e emoções dessa música flamenca, dessa música cigana, dessa alma apaixonada e dessa essência “caliente”.
Entrou em seu atelier, acendeu as luzes e caminhou até a mesa principal de trabalho. Naquele lugar podiam-se ver madeiras por todos os lados, prateleiras e mais prateleiras com ferramentas de todos os tipos e tamanhos, esqueletos de violões, guitarras penduradas, e no ar um forte cheiro a serragem. Don Juan Carlos precisava conferir se o verniz aplicado com todos os segredos do polimento francês estava em perfeitas condições naquele violão. Tudo estava perfeito, impecável, magistral, ainda assim, faltaria a opinião de seu comprador. Sentou-se numa das cadeiras para descansar um pouco, quando...
Toc, toc, toc, escutou-se na porta de entrada do atelier. Don Juan Carlos não precisou levantar-se para atender, pois se abriu sozinha e entrou seu cliente, o guitarrista espanhol chamado Miguel Ramirez.
Miguel Ramirez, (homem esbelto, com sua calça de couro preto justíssima ao corpo, camisa de seda impecavelmente branca, longos cabelos pretos amarrados para trás, e uma barba meticulosamente desenhada no queixo), olhou-o fixamente ao mesmo tempo em que entrava no atelier. Sequer Miguel abriu a boca para cumprimentar o artesão porque não era um homem de muitas palavras. Na verdade, o senhor Ramirez não gostava de prosas, seus lábios estavam preparados para os murmúrios do flamenco e seus ouvidos estavam atentos somente ao lamento de um violão.
Começou a caminhar lentamente pelo atelier (escutava-se o ruído das pequenas placas metálicas na sola de seu sapato) ao mesmo tempo em que passava suas mãos pelo mesa levando com seu dedo indicador todo o pó-de-serra acumulado pela semana de árduo trabalho. Finalmente avistou seu violão. Olhou novamente a Don Juan Carlos que nada lhe disse. Sem sequer levantar-se da cadeira, o luthier simplesmente fez um gesto com as mãos de que ele poderia verificar a qualidade de seu trabalho.
Miguel Ramirez tomou delicadamente o violão e fechou seus olhos. Com um leve toque de dedos começou a acariciá-lo suavemente, ao mesmo tempo em que cheirava cada parte daquele instrumento. O cheiro da madeira lhe produzia um estado de êxtase e inspiração artística. Cheiro de vida, cheiro de natureza, cheiro de música. A tampa estava feita com Abeto proveniente dos Alpes Suíço, madeira de vinte anos, tempo mínimo para a produção de um exímio exemplar cigano. O braço era puro Cedro, madeira leve, com média resistência. A escala levava o autêntico ébano africano, madeira nobre e resistente. As laterais, nada mais e nada menos que uma madeira valiosa para a firmeza dos agudos, um Jacarandá da Bahia. Tudo estava esplendido, insuperável, magnífico. Simplesmente sublime.
Miguel Ramirez estalou os dedos para que Don Juan Carlos lhe trouxesse um diapasão (instrumento metálico em forma de forquilha, que serve para afinar instrumentos). Don Juan Carlos levou-lhe o diapasão com suas mãos trêmulas e imediatamente se afastou voltando-se a sentar-se na cadeira. O guitarrista afinou seu violão e imediatamente começou com seu belo dedilhado flamenco. Nas mãos de Don Juan Carlos aquela madeira, matéria prima com vida natural, tomava formas aos poucos até concluir-se em uma peça com vida artística, mas somente escutando a Miguel Ramirez, ele podia realmente sentir o prazer de desfrutar com seus olhos e ouvidos a madeira feita arte-final, feito o propósito do trabalho de um Luthier.
As luzes se apagaram de repente e tudo ficou escuro. Apenas um foco seguiu funcionando, aquele, justamente aquele que estava encima de Miguel Ramirez. Aquele atelier transformou-se num maravilhoso cenário. A paixão e a efervescência daquela música cigana, fez com que Don Juan Carlos pudesse ter ali mesmo uma dançarina de Baile Flamenco, com seu lindo vestido vermelho, suas flores na cabeça e uma impecável habilidade com as castanholas. Ao outro lado, escutavam-se os outros músicos que o acompanhavam com seu canto nostálgico e suas batidas de palmas ao compasso da guitarra de Miguel Ramirez. O sapateado flamenco, como não tê-lo ali, cujo piso de madeira do atelier demonstrava ser o melhor palco para essa exibição. Música, canto, palmas, sapateado, castanholas...OLÉ!!
Quando Miguel Ramirez deixou de tocar o violão, Don Juan Carlos viu como todas as luzes misteriosamente se acenderam outra vez, mostrando-lhe que não havia mais ninguém naquele atelier que não fosse o guitarrista e sua própria presença. Miguel Ramirez lhe sorriu com cara de estar satisfeito por sua compra. Aquele violão realmente tinha cumprido com todas suas necessidades e expectativas. Aquele instrumento musical havia sido feito à perfeição para que o ato de interpretar uma canção fosse um momento prazeroso para ele e seu estimado público. Miguel lhe perguntou:
- ¿Cuanto le debo caballero?
- Nada señor Ramírez, nada. Usted no me debe nada. ¡Ya me lo había pagado por anticipado!
Miguel Ramirez guardou seu violão na caixa e saiu pela porta, quando...
...A luz do sol que entrava pela janela despertou a Don Juan Carlos. O cansaço foi tanto que ele nem percebeu que tinha ficado dormido a noite inteira sentado na cadeira de seu atelier. Levantou-se, olhou-se num pequeno espelho pendurado na parede e foi até o banheiro lavar-se a cara. Secou seu rosto e respirou fundo, quando...
Toc,toc,toc, escutou-se na porta de entrada do atelier.
NOTA: Lamentavelmente não poderei demonstrar com os recursos de áudio qual era a música que Don Juan Carlos escutou em seu atelier. Mas para os leitores que desejem conhecê-la, sugiro que entrem por YOUTUBE e busquem os mais diversos vídeos do guitarrista espanhol Paco de Lucía.