Memórias

"Um homem pode ser destruído,

mas nunca derrotado"

( Hemingway )

Acordava diariamente aos primeiros raios de sol. Seu despertador era o canto dos maçaricos, gaivotas, batuíras e trinta-réis. Mas não naquela manhã. Noite passada bebera uma caneca a mais de vinho. Queria aplacar as lembranças de tempos idos. Tinha por hábito tomar duas canecas de vinho, uma ao jantar e outra antes de dormir, na companhia de um bom palheiro. Levantou e estendeu o lençol puído sobre o velho colchão de espuma. Percorreu a pequena distancia até o banheiro arrastando as chinelas pelo chão. Talvez para evitar o rangir do velho assoalho de madeira. A água jorrada em seu rosto enrugado não estava gelada. Definitivamente, os dias frios de inverno já haviam ido embora. Ajeitou, com as mãos, os cabelos brancos e mal cuidados. Voltou para o ambiente conjugado, que abrigava quarto, sala e cozinha, e preparou seu café. Precisava andar mais rápido. O barco logo zarparia.

Deixou a casa para traz, andando pelas estreitas vielas da vila de pescadores. Quando retornasse, elas estariam repletas de crianças, fazendo algazarra por entre redes, peixes e pescadores. Velhos barracos margeavam as ruas estreitas. Conhecia cada um dos moradores. A maioria nascera ali mesmo, assim como seus pais e o pai de seus pais. Não tinham vida fácil. Acordavam cedo, todos os dias, para enfrentar os desígnios do mar.

Os outros pescadores já estavam quando chegou ao píer. Eles terminavam de carregar o barco. Matias cumprimentou e desculpou-se um a um. Não se fazia necessário. Não foram poucas as vezes que cobriu a ausência de algum deles. Jogaram mais um pouco de conversa fora, antes de partirem pela barra da lagoa.

Enfim, ganharam o mar. Ele ficava mais azul à medida que se afastavam da costa. Navegaram por quase três horas, na direção norte, até alcançarem o pesqueiro. Tão logo chegaram, prepararam as linhas. As gaivotas anunciavam que teriam um dia muito bom de pesca. Atracaram em baixo do bando que sobrevoava o cardume de anchovas. Era lindo o espetáculo feito por elas quando fisgadas. Pulavam e faziam uma força enorme. Os pescadores chegavam ao extremo de suas resistências para embarcá-las. Foi a melhor pescaria dos últimos tempos. Após seis horas, o porão estava cheio. Era hora de retornar. O sol já iria se pôr.

Diferente do que acontecera durante todo o dia, seu olhar perdido no horizonte destoava da alegria geral da embarcação. O céu estava tomado por uma cor gradiente, entre o azul do dia e o escuro da noite. O crepúsculo lhe trazia um grande vazio e uma imensa saudade.

Leonor não aprendera a gostar do mar. Dele tinha medo. A cada partida do marido, despedia-se como se fosse a última. Por diversas vezes propôs que fossem embora. Buscar vida nova. Isto Matias não cogitava. Viveram as tormentas por dez anos. Neste tempo, só cresceram seus temores, seus medos. Foi num dia frio de inverno que ela partiu. O longo inverno, frio e chuvoso, parecia não ter fim naquele ano. Ela decidiu abreviar sua dor e não esperar uma nova estação. Partiu enquanto o marido estava no mar. Matias não se despediu do filho. Pedro tinha então apenas seis anos. Ele encontrou a casa vazia quando retornou ao fim do dia. Isso há quase trinta anos.

Nestes últimos trinta anos, não viu o filho mais do que três vezes. A primeira demorou demais e foi o motivo da escassez. De inicio, usou seu pouco tempo disponível para procurar nos lugares mais óbvios, porém, não os encontrou. Depois de doze anos, um pescador amigo seu foi visitar uma filha que morava na serra. Voltou dizendo que viu uma mulher muito parecida com Leonor. Matias não tardou a partir. Na viagem só pensava em reencontrar o filho. Seguiu as orientações do amigo e chegou à loja em que trabalhava sua ex-mulher. Marcaram de se encontrar à noite na casa dela. O reencontro foi péssimo. A discussão foi horrível e Pedro chegou no momento mais delicado, onde os ânimos estavam por demais acirrados. Ele entrou e empurrou o pai, que caiu sobre uma cadeira. Matias demorou alguns segundos para levantar. Quando o fez, saiu da casa sem olhar para a ex-mulher e o filho. Não poderiam vê-lo chorar.

As outras duas vezes em que viu o filho foi escondido. Uma na sua formatura em administração de empresas. Pedro estava com 23 anos. Dois anos depois no seu casamento. O filho estava muito elegante naquele terno de risca preto. Não faltou vontade de abrasá-lo. O que faltou foi coragem. Em cada das oportunidades Matias chorou. Em cada uma delas ele bebeu até cair, trancado em seu barraco. Jamais alguém o veria chorando ou bêbado como um traste.

As angustias vinham e iam. Invariavelmente ao entardecer. Exceto nas datas especiais. Nestas, elas tomavam conta da noite inteira. Foi o que aconteceu ontem. Era o aniversário de Pedro. Trinta e sete anos.

Foi uma festa quando o pesqueiro chegou à vila. As crianças corriam ao seu redor e dos outros pescadores. Faziam uma enorme gritaria. Há tempos não viam tantos peixes. Foram até a cooperativa e puseram o pescado na câmara fria. Antes haviam pegado o suficiente para o consumo de suas famílias. Naquela noite houve festa na vila.

Assim correram os dias. Passou a primavera, o verão e já estávamos no fim do outono. As noites já começavam a ficar maiores e mais frias. O vento já anunciava a chagada do inverno.

A surpresa chegou num final de tarde. A pescaria não fora boa naquele dia. Os homens estavam cabisbaixos. Logo que chegaram a vila, Matias percebeu que algo estava acontecendo. Ele conhecia o olhar daquelas pessoas. Ninguém lhe falou nada. Foi pego de surpresa quando chegou em casa e encontrou Pedro esperando.

Após três anos muito difíceis, seu casamento havia acabado. A esposa obtivera a guarda do filho e foi morar nos Estados Unidos. Ele foi afastado do filho que, neste momento de crise, foi sua única razão de sorrir e de viver. O vazio lhe trouxe uma dor que parecia não ter fim. Pedro sentia-se destruído e sem forças para superar aquele momento. A aflição fazia seu pensamento girar. Misto de loucuras com recordações do passado. Foi numa destas viagens que lembrou do pai. Sim, ele sofrera tanto quanto ele estava sofrendo agora. Talvez ele, e só ele, poderia aplacar a sua dor.

Matias viu a dor nos olhos do filho. São dessas coisas que só pai e mãe reconhecem. Que nem o tempo e a distancia apagam. Sem qualquer palavra, pai e filho se abraçaram forte. Era como se estivessem jogando nos braços, um do outro, todos os seus sentimentos. Ficaram se olhando por um longo tempo, quase não acreditando que estava acontecendo. Estavam muito emocionados. Entraram no barraco ainda abraçados. Conversaram por mais de duas horas sobre tudo. Tinham muito o que contar. Riram, choraram, se abraçaram. Beberam vinho enquanto conversavam. Já alegres pela bebida, saíram para o mar. Sentado na areia, Matias relembrou das brincadeiras de moleque do filho. Dele correndo atrás das gaivotas que pousavam na praia. Dos primeiros passos, das primeiras palavras que falou. Pedro disse que sua raiva era por ele querer que as coisas que aconteceram em sua vida, tudo o que aprendeu e viveu, queria ter feito ao lado do pai. Depois de algum tempo, voltaram para casa e foram dormir bem mais leves.

A vida não é certa. Podemos ter os instrumentos mais precisos, rotas previamente traçadas, e isto não é certeza de sucesso. Ninguém sabe o que está escrito. Não que Matias seja um religioso devoto. Muito pelo contrario. Nas rodas de amigos, dizia que a palavra de Deus não servia de moeda para ninguém e era por isto que padres e pastores a distorciam. Usavam da ingenuidade dos homens. Mas ele tinha a certeza que o senhor reservara a ele aquele momento. Isto estava escrito. Poder dividir aquele instante com seu filho. Justo quando ele mais precisava de conforto e do conselho de quem vivera experiência semelhante. Era como se ele tivesse sofrido para poder ensinar o filho.

Matias nunca se sentira um derrotado. Agora ele tinha certeza disto.

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