LÁGRIMAS PROPORCIONAIS !

Paulo Sergio: Brasileiro, mulato, 46 anos, operário especializado.

Paulo Sergio: Alcoólatra, fumante irremediável, hipertenso, obeso, diabético e impotente.

Paulo Sergio: Corinthiano, membro emérito da Gaviões da Fiel

Paulo Sergio da Silva, personagem póstumo deste conto, morrera no início da noite do dia 08 de março de 2005, numa quarta feira..Conseguiu precipitar-se, com seu Honda Civic, cor branco modelo 96, do viaduto que dava acesso ao seu bairro, espatifando-se na marginal da Rodovia Dutra na altura do km 144, na cidade de São José dos Campos.

Carro: Perda total

Corpo: Morte instantânea.

Dois dias após a trágica ocorrência Márcia, sua viúva, apresenta- se na fábrica, onde Paulo Sergio trabalhou por tantos anos, para tratar da papelada do desligamento e do seguro.

Nunca lá estivera, mas a fábrica lhe parecia familiar, os jardins bem cuidados que circundavam as alas de produção, o prédio dos escritórios, o ambulatório médico, tudo lhe parecia tão conhecido.Recordou-se das conversas de Paulo Sergio, dizendo a ela de suas funções de Cipeiro e das responsabilidades que a mesma envolvia. Falava com orgulho, ele gostava muito de ser Cipeiro.

No escritório, o atendente de Recursos Humanos solicitava os documentos necessários à formação do processo. Cada documento entregue era acompanhado por soluços nervosos e pelas reminiscências gravadas na memória e no coração de Márcia.. O atendente, discretamente, observava o rosto daquela mulher,rosto vincado por rugas profundas e sofridas e que mesmo assim transparecia, ainda, ter sido Márcia uma bela mulher na sua juventude. Sim, um belo exemplar da raça negra.

Naquele momento. a restropectiva de sua vida , como num filme, aflorava nos sentidos mais íntimos.

Por vinte e seis anos esteve casada com Paulo Sergio. Por vinte e seis anos sofreu calada. Não que Paulo Sergio fosse ruim, não era isso. Era uma boa pessoa, podia se dizer uma criança, extremamente egocêntrica e mimada, que carregou durante sua existência, do berço ao precoce túmulo, a sina dos desgraçados pelos vícios do álccol e do tabagismo.

Márcia recordava, casaram-se jovens , ambos tinham vinte anos e tiveram duas filhas, Suellen, a mais velha e Wereuska a caçula, com dois anos de diferença entre elas.

O que mais doía em Márcia era a forma como o pai se relacionava com as filhas,

sempre ausente. Ausente nas festinhas da escola, ausente nas comemorações dos aniversários. Uma vez simplesmente Paulo Sergio esqueceu-se que era aniversário da Wereuska e ficou com seus amigos na padaria, na roda de pagode que tanto apreciava e entre cervejas e espremidinha perdeu-se do relógio e mais um aniversário se foi sem a sua presença.

Recordava-se das intimidades conjugais, longe de ser um ato de amor, assemelhava-se mais a um ato de estupro. Paulo Sergio, bêbado como de costume, arriava as calças e sentava-se cambaleante na beira da cama e a convidava para mais uma foda, como costumava dizer.

- Vem gostosa, abaixa esse pau.

Márcia se submetia calada...

A progressão do diabetes e a conseqüente impotência de Paulo Sergio, não constituiu problema para Márcia, simplesmente a libertou daquele suplício matrimonial.

Paulo Sergio não se cuidava e cada vez bebia mais e mais. Chegou ao ponto de não controlar mais seus fluidos intestinais e cabia a Márcia a limpeza daquela imundície. Lavava o vaso sanitário, o chão do banheiro e suas roupas, enquanto Paulo Sergio dormia pesadamente sonhando com o Coringão.

Seu time entrava em campo sob a explosão dos foguetórios, aos quais o estalo do abrir de mais uma latinha de Brahma se misturava.

“Salve o Corinthians, campeões dos campeões.....”

Sonhava com volta de ônibus para São José, com as latinhas de cerveja que ainda iriam rolar e com o pagode.

“Depois que mataram a jibóia jararaca deita e rola. Jararaca deita e rola depois que mataram a jibóia...”

Sonhava com as garotas que viria pela janela do ônibus e já meio bêbado, colocando a cabeça pra fora da janela, gritava com toda voz:

- GOSTOSA.....GOSTOSA.

Paulo Sergio sonhava e Márcia limpava, limpava calada.

O diabetes de Paulo Sergio progredia, rapidamente, na mesma proporção de suas bebedeiras.

Já não bastasse toda sujeira que fazia pelos seus descontroles fisiológicos, nos últimos tempos de vida, urinava fora do vaso sanitário, as formigas eram atraídas por aquelas gotas tal a quantidade de açúcar em seu organismo.

Márcia a tudo limpava e se submetia calada.

O atendente de Recursos Humanos examinava com cuidado todos os documentos, sabia que qualquer erro, omissão ou falta de documento atrasava o processo. Se fosse morte acidental era necessário o boletim de ocorrência policial e o laudo do IML determinando a causa mortis. Notou que no laudo médico não havia menção de vestígios de álcool no organismo do Paulo Sergio, o que era bom para Márcia, uma vez que o seguro seria pago em dobro, por morte acidental.. Informou a Márcia que assim que o cheque chegasse ela seria avisada e a dispensou.

Paulo Sergio não havia bebido naquele dia, porque era uma quarta feira. Pretendia chegar em casa mais cedo, guardar o carro e se reunir com a turma da Gaviões para irem ao Morumbi. Era dia de jogo do seu Coringão e a bebedeira havia sido postergada, se realizaria durante a viagem de ônibus, ao som do pagode.

Quarenta e cinco dias após o acidente Márcia recebeu o comunicado pra ir buscar o cheque da seguradora..

Não ia ficar mal de vida. A Caixa Econômica quitou o financiamento da casa, receberia uma pequena pensão da previdência e mais o dinheiro do seguro aplicado. Sem luxo e com um pouco de controle manteria uma vida digna para si e as meninas.

Ao pensar nesses aspectos de sua nova vida sentiu um ligeiro aperto no coração, duas lágrimas brotaram, uma em cada canto do olho.

Eram as últimas lágrimas que derramaria por aquele que fora seu homem.

As lágrimas proporcionais.

Luiz Augusto de Andrade
Enviado por Luiz Augusto de Andrade em 19/03/2011
Código do texto: T2858877