ZÉ PRETO

ZÉ PRETO

Zé Preto começara a trabalhar nas salinas acompanhando o pai desde os dezesseis anos, carregando balaios de sal. Era um trabalho penoso. Os balaios eram pendurados em grossos caibros de madeira apoiados sobre os ombros de dois homens. Os ombros eram protegidos por rodilhas de pano velho, sujo e já salgado pelo uso. No início, ficavam feridos e sangravam. Com o tempo, porém, saravam, começando a formar-se uma tumefação que se transformava em calombos enrijecidos. Quem trabalhou em salina conservou-os pelo resto da vida.

Saiam de casa com a madrugada ainda escura, eles e alguns vizinhos, que se iam juntando pelo caminho, formando uma leva de pequenos grupos, cada um conduzindo sua trouxa – redes, velhos cobertores para se abrigarem do frio e um pequeno farnel – jabá, feijão, farinha, pão seco, rapadura, etc., pois abastecerem-se nos barracões sairia muito mais caro. Alguns levavam uma garrafa de pinga. Os mais jovens tagarelavam, os mais velhos resmungavam, quase todos lamentando aquele meio de vida, mas conformados por ser o único com o qual poderiam se manter.

Trabalho penoso, pisando sempre nos charcos de água salgada, represada até se cristalizarem formando o sal, quando começavam a recolhê-lo nos balaios e empilhá-los em diversos montes, parecendo pirâmides que reluziam ao sol e castigavam a vista. Só retornavam às suas casas, exaustos, após a paga, aos sábados.

Zé Preto, cujo nome era José Pereira da Silva, recebera esse apelido porque nascera com a pele mais escura do que seus irmãos. Enquanto menino de cinco a seis anos, ficava por ali brincando com os outros garotos. Dos oito aos dez anos frequentara a escola da professora Naninha, mal dando para aprender a ler alguma coisa e fazer pequenas contas. A partir dos dez, para complementar a manutenção da casa, teve que acompanhar Pedroca, “botador” de água colhida no rio e arrastada em ancoretas, amarradas pelos lados em grossas cordas. Após abastecer a própria casa, vendia água no bairro e mesmo em algumas ruas do centro. Quem tinha jumento, trazia-a em duas ancoretas, como, anos depois, ainda fazia o velho e folclórico Benício Gago, na década de quarenta.

Quando Zé Preto atingiu os dezesseis anos, seu pai o chamou para trabalhar com ele nas salinas, passando o ofício de “botador” de água ao mano mais novo, já com doze anos.

Mas Zé Preto não queria continuar no penoso ofício do pai. Via-o sair todas as semanas nas madrugadas e só retornar aos sábados, abatido pelo cansaço, ainda mais em troca de um salário miserável. Compadecia-se do seu sofrimento, como não poder todos os dias estar ao lado da mulher e dos filhos. Queria aprender um ofício.

Um dia saiu de casa à procura de trabalho. Na rua que atualmente tem o nome de Mário Negócio estavam construindo uma casa. Aproximou-se, perguntou quem era o mestre e o informaram de que se chamava Chico André. Tomou coragem e o abordou, perguntando se ali não havia alguma vaga. O Mestre Chico, com sua experiência, olhou aquele moreno, moço e forte, sentindo uma instintiva simpatia. Disse-lhe que estavam necessitando de um servente. Se quisesse, poderia vir no dia seguinte.

Voltou para casa satisfeito. Disse à mãe que não iria mais trabalhar nas salinas. Tinha pena de o pai ir sozinho, mas não queria aquela vida. No dia seguinte, foi dos primeiros a chegar à obra, recebendo a incumbência de preparar a massa. Ensinaram-lhe a proporção da mistura de cimento com barro e areia e como a remexia até chegar ao ponto. Não precisou de mais lição.

Reconhecendo-o trabalhador e inteligente, Mestre Chico em pouco tempo o promoveu a ajudante de pedreiro, lhe ensinado o assentamento dos tijolos e o uso do nível. Antes do término da obra já estava no reboco, manejando com destreza a colher, a “desempoladeira” e a “fatrassa”. A evolução para outras etapas do serviço foi questão de poucos meses, ganhando o apreço e a amizade do mestre.

Na contratação de outra obra, lá estava ele, já como principal ajudante, substituindo o mestre em suas ausências. Interessante é que sua evolução não causara ciumeira entre os antigos operários que sempre acompanhavam Chico André. Pelo contrário, tornaram-se todos seus amigos, pois era uma pessoa humilde e simpática.

Assim, com melhor salário, Zé Preto pode dar uma ajuda melhor em casa e até amealhar alguma economia. Já conhecia Judite, uma moça do mesmo bairro. Ela, por sua vez, já o notara e simpatizara com ele. Um dia, numa festa, dançaram, e ali mesmo começou o namoro, já ele pensando no casamento. Queria ter sua casa, sua mulher e filhos. Comunicou aos pais.

Coincidindo com seu plano, aconteceu que o mestre Chico foi procurado por seu Joaquim para construir uma casa na Rua Machado de Assis. Como a obra que já assumira ainda demoraria alguns meses, lembrou-se de indicar Zé Preto para administrar a construção.

No dia aprazado, lá estava Zé Preto e sua equipe, quando se aproximou seu Joaquim, cumprimentando-o: Bom dia, Mestre Zé Preto. Ao ouvir ser chamado de mestre pela primeira vez, Zé experimentou uma agradável sensação.

De obra em obra, Zé ganhou dinheiro suficiente para construir sua própria casa, não de taipa, como a do pai, mas de tijolo e coberta de telhas. A esse tempo, completara um ano o casamento e o primeiro filho estava por nascer. Um mês depois já o menino era batizado com o nome de Pedro.

Pedrinho era a alegria de Zé Preto. Estando em casa, seu divertimento era brincar com o filho, tomá-lo nos braços, afagá-lo. Nunca observou que seus olhos não tinham brilho. Logo que o menino robusto começou a engatinhar foi que a mulher chamou sua atenção para o fato de ele bater com a cabeça nas pernas da mesa, nas cadeiras, nas paredes. Não demonstrava qualquer sentido de orientação.

Preocupado, levou-o ao médico que, após examiná-lo constatou que nascera cego. Aconselhou-o a levá-lo a Fortaleza, a um afamado especialista. Na esperança de uma cura, foram, enfrentando penosa viagem. O diagnóstico veio: o experiente médico indagou da mãe se não sofrera alguma doença quando grávida, descobrindo, pelos detalhes de suas revelações, que tivera rubéola. Estava aí a razão do drama dos pais, aos quais foi então revelado, para sua grande tristeza, não haver possibilidade de cura.

Naquele tempo só se falava no Pe. Cícero do Juazeiro, nos milagres que operava. Contavam-se muitos casos comprovados de cura. Valeria a pena fazer mais esse sacrifício? Estava sendo organizada uma romaria e Zé Preto resolveu ir.

Saíram de Mossoró em setembro de 1939. Após três dias de viagem chegaram a Juazeiro do Norte. Uma multidão esperava falar com o padre. Só após dois dias chegou a sua vez. O padre, já velhinho, os acolheu com carinho. Contaram-lhe o caso do menino e o que os médicos haviam dito.

O padre tomou a criança, olhou-a bem nos olhos e lhes disse:

- Meus filhos, ninguém compreende os desígnios de Deus. Eu não posso fazer nada, mas Deus, que é todo poderoso e cheio de misericórdia, tudo pode, desde que haja fé.

Tocou os olhos de Pedro com os dedos, orou e o abençoou.

- Voltem para sua terra. Quando lá chegarem rezem um terço todas as noites, com uma vela acesa. Se no trigésimo dia seus olhos brilharem, Deus terá atendido seu pedido. Não precisa voltar aqui, que é um sofrimento. Se quiserem, mandem uma carta contando o resultado.

Promessa cumprida com emoção, sobretudo com muita fé. Ao fim dos trinta dias os olhos de Pedro, que já estava completando três anos, brilharam. É impossível descrever a sensação que deve ter experimentado. Sorriu pela primeira vez. Seus pais choravam de alegria, de felicidade.

Em pouco tempo, Pedrinho começou a brincar com os amigos e a frequentar a escola. Ao voltar da aula, depois do almoço ia estudar. Todas as tardes costumava jogar bola em um terreno espaçoso em frente à sua casa. A vida seguia normalmente, Judite estava novamente grávida e Zé Preto exultava de alegria.

Numa dessas tardes, Pedrinho, ao sair de casa correndo para juntar-se aos outros meninos no campo, uma moto em velocidade o atropelou. Pessoas que viram o acidente correram para socorrê-lo, mas horas depois o garoto faleceu.

Foi um dia de juízo. Zé Preto não podia acreditar. Aos berros, com o filho nos braços, tentava como que ressuscitá-lo. Antes continuasse cego, mas vivo. Por que Deus o curara para depois deixar que o matassem assim de forma tão violenta?

Passou dias sem ir ao trabalho. Com uma semana, voltou, no seu semblante a tristeza estampada. Só o tempo poderia cumprir sua função: quando não esquecer, pelo menos suavizar a saudade.

Em outubro, justo no mês em que nascera Pedrinho, Judite deu à luz outro menino, parecido com Pedro; a diferença é que seus olhos brilhavam e com poucos dias já sorria dormindo. Por isso, o pai deu-lhe o mesmo nome. Outros filhos vieram, Aninha e Bento. A felicidade parecia ter voltado à casa de Zé Preto, que nunca esqueceu o primeiro filho.

E também nunca procurou entender os desígnios de Deus, o que a ninguém é dado entender.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 17/03/2011
Reeditado em 07/04/2011
Código do texto: T2853416