Noite Ruim

Retirou o canivete do bolso e entregou para o amigo:

- Divirta-se.

- Cara, melhor eu desistir dessa idéia.

- Desistir? Só faltou o filho da mãe mijar na sua cara!

- Eu sei. Mas não creio que isso seja necessário.

- Concordo. Realmente necessário seria você arrancar os testículos do desgraçado e fazê-lo comer. Sabe o que vai fazer agora?

- O que?

- Você vai pegar essa porra de canivete, voltar àquela maldita esquina e dar uma lição naquele infeliz.

- Certo. Você tem razão.

A passos trôpegos, Abílio caminhou em direção ao local. O que restava de seu cigarro escorregou de seus dedos, causando uma leve queimadura no dedo indicador. E o efeito do álcool estava cada vez mais intenso. Atravessou a rua e subir a calçada do outro lado foi como praticar uma escalada. Ainda foi capaz de ouvir que alguém tocava uma guitarra desafinada em alguma casa misturada a tantas outras na escuridão da noite. Executava uma torturante interpretação de uma música do Lynyrd Skynyrd.

Sua visão turva não impediu que avistasse o homem ali parado no mesmo local. Trajava roupas odiosamente limpas e impecáveis. O cabelo cuidadosamente aparado combinava com sua face simetricamente perfeita e sem expressão. Mantinha-se quase imóvel e carregava um ar de imponência que lhe servia como máscara. Abílio finalizou sua caminhada e postou-se de frente ao homem. O sujeito misterioso permaneceu impassível. Seu olhar fixo era tão penetrante a ponto de parecer capaz de enxergar até mesmo os processos intestinais de uma pessoa. Permaneceram naquele jogo durante certo tempo. Abílio transpirava seu odor alcoólico e se concentrava em tentar converter seu ódio em força para controlar a mão que tremia devido à embriaguez. Seu desafeto continuava inalterado, mas ao mesmo tempo transmitia cada vez mais escárnio e indiferença. Até que o silêncio foi finalmente quebrado pelo rapaz que havia entregado o canivete:

- Está esperando o que, seu monte de merda? Mate logo o desgraçado!

Abílio não tinha notado sua aproximação. Seu parceiro já estava ao lado dos dois e continuou:

- Peça desculpas, cretino!

Então aquele ser humano desconhecido falou. As palavras saíam com irritante firmeza e boa dicção, enquanto sua boca exibia dentes ofensivamente brancos.

- Desculpas pelo quê, meu caro?

- Vá se foder! Ainda é capaz de perguntar?

- Meu amigo, não compreendo a razão de seu descontentamento.

- Você achou que poderia pisotear e humilhar esta pessoa sem sofrer conseqüências.

- Senhor, eu não me lembro de conhecê-lo. De qualquer forma, o que acontece àqueles alheios a mim não me importa.

- É claro que não lhe importa! Você age da mesma forma todos os dias. Mantém-se orgulhoso do que considera ser sua perfeição inatingível ao mesmo tempo em que se acha no direito de mijar na cara de todos a sua volta.

- Escute aqui, rapaz, eu POSSO agir da maneira que quero. Mantenha-se em sua posição inferior e não me importune mais.

- Nunca! Meu amigo nunca se renderá à sua expressão idílica da existência humana. Ouça o que lhe digo!

- Não me faça rir! Este senhor que defende não passa de um simples bêbado. Olhe para ele! Mal consegue se manter sobre as próprias pernas. Suas “frases de efeito” não passam de um delírio.

- Cale-se! Sua expressão insolente e soberana não me assusta nem um pouco. Você se julga imortal e superior a tudo. Porém, ouça-me! Há aqueles que nunca irão se adaptar como outros fracos de espírito fazem. Seu jugo irá acabar um dia, irá se arrepender do que já fez tantos passar. Sua fachada imponente é apenas um embuste.

- É realmente um tolo! Acha que seu discurso irá me comover? As pessoas têm que se adaptar a mim, não o contrário. Se eu humilhei essa forma deprimente da existência humana, repito, não me importa. E não há o que posso fazer.

- Isso é o que veremos! – e se dirigindo a Abílio - Meu caro amigo, realize sua vingança! Acabe com a vida de quem tentou acabar com a sua!

Abílio retirou o canivete de seu bolso. Sacou a lâmina e cravou-a contra o estômago de seu adversário. O sangue escorreu com profusão enquanto o homem contorcia-se até sua última respiração. Golfadas de vômito vermelho jorravam de sua boca. E tudo ainda parecia perfeitamente... impecável.

No dia seguinte encontraram Abílio jogado na calçada, com um canivete penetrado em sua carne. As testemunhas disseram apenas que o viram bêbado e cambaleante pelas calçadas. Falava sozinho, provavelmente um delírio de alcoólatra. Até seu momento final, quando caiu desfalecido e solitário pelas ruas. E ninguém se importou...