O Tempo fora da caixa.
Vinte anos. Ela e o sinal de trânsito frente a frente, as luzes mudando de cor em segundos contados num letreiro: menos 30, menos 29, menos 28... mais 28, mais 29... Alguém a olhava. Sensação de perturbação. Sensação de perseguição. A terapia, depois de anos, poderia ter ajudado e agora pensava: talvez não tenha sido suficiente, precisava demais. Sensação de vigília e olhares de busca. As mulheres sofrem mais de síndrome do pânico, leu numa revista feminina. Mas, calma, disse pra si: a mulher não há de ser para sempre a culpada por ter criado o homem a sua imagem e semelhança. Ela não é Deus, se ele é masculino. Em segundos o sinal a abriria. Não, não olharia, essas sensações não passavam de tolos pressentimentos, que segundo o analista, só geravam mais ressentimentos e isso já nem contava mais. Só olharia em espelhos de autoconfiança. Uma ciência descoberta: a mulher que se aceita é a mulher que se ama e é preciso amar a si mesma antes de amar os outros. Sim, ele estava do outro lado, mas ele era o outro, o inferno como se sabe. Em tom cada vez menos grave não ouviria ou haveria mais na concha os vestígios dos anos que quase a consumiram com pílulas e receitas de felicidade. As mulheres tomam mais antidepressivos, isso lido numa revista de consultório, pode até parecer trágico. Não é. Calma, o demônio também está no masculino. Muito compreensível. E se a vida vem em câmera lenta, basta canalizar sua energia para o alto. E assim criar a sua própria subjetividade, identidade, singularidade, pense: circularidade. A respiração, quando aprendida pode-se ouvir, não importa que o ar esteja contaminado, que o vidro esteja fechado e que se tenha rugas de expressão para tirar. E se ouvir a respiração dele, machuca, bem perto da nuca, como uma arma pronta a disparar: não pare. Pode ser sempre um assalto. Não olhe para trás!
Mas, quem disse, se não resistiu e olhou?! Era o passado com as chaves na mão! E ali mesmo, na gangorra da vida, começou a sentir seus pés virando sal. Tão bem vestido o passado com seus olhos de sempre, talvez um pouco mais calvo, mais velho. Um demônio masculino. Sim. O tempo havia passado para todos, havia passado para ela. No rosto dele cicatrizes desconhecidas, sombras em luzes nunca antes vistas. Ele sorria. Para quem? Será que pôde reconhecê-la? Será que devia? Sentiu o cheiro do sal, a maresia subindo as pernas, a praia que nunca puderam ir, as mãos dele, os dedos longos... As mãos de Deus sobre o volante. Lembre-se: as mãos sobre o leme. O Leme. Lembrou do mirante. Os fogos. O Rio lindo. Aquelas férias incríveis. A brisa quente. O tempo morto. Não lembre! Uma bossa tocando. Era Tom Jobim... A música dentro de um presente abafado onde uma bailarina dança. Cuidado, há perigos na esquina...
27, 26... Vinte anos. Mas ela estava tão bem com seu namorado mais jovem, seus filhos numa universidade estrangeira, as amigas e as tardes de sexta para rir e conversar sobre notícias, fotos e pessoas instantâneas. A cidade quente e os meninos malabaristas na linha do asfalto. O menino e o nada a fazer. “Esse menino tem cara de fome”. Pensou: se fosse mais altruísta, poderia construir sua própria solidariedade. Sentiu o desejo imenso de romper os vidros de ambos os carros e perguntar: “por onde você andou? Fale dos anos que não vivemos. Sua mulher, os filhos: como estão? Sua vida, por onde foi?” O passado e o sal. E o sol da tarde se esvaindo. E a fumaça, e o calor, e o menino e os malabaris: bolinhas de areia. Mas ela estava protegida da cidade. Protegida contra o tempo e sua voracidade, e sua feracidade e sua fugacidade. Ela protegeu-se bem, acumulando defesas. E voltaria logo para casa para se trancar em seu quarto com cremes e revistas de decoração. Assim se distrairia de qualquer pequena e sempre triste profundidade. O tempo cairia em fatias sobre seu travesseiro de penas de ganso e ela esqueceria, compondo sua própria positividade. Havia desenvolvido uma arte para o esquecimento. Ou seria uma técnica?
Vermelho. 3,2... O menino no sinal. O menino e um grito. Seu. Para dentro? Não conseguiu abrir a janela, embora moedas brilhassem perto da marcha. “O menino deve saber se virar com aquela cara de fome”. Olhou mais uma vez. Alguém buzinava atrás. Precisava ir. Não. Não abriu o vidro, não viu o homem, não viu o menino, não fez nada. Eles haviam sumido. Ambos: o passado e o futuro. Deus e o Demônio. O tempo e suas molas voláteis abrindo-se feito uma caixa de Pandora. Meninos malabaristas poderiam ousar sair de dentro dela. Mas agora estava protegida, mãos enormes a fechavam de novo. Mãos de um clown.
Um sinal: Verde!
Patricia Porto