O homem preso em si mesmo
Todos os dias, sem falhar um sequer, aquele velho homem de fisionomia debilitada e frágil, atravessa a rua, sempre no mesmo horário; cabeça baixa, passos lentos, levando duas sacolas plásticas de supermercado, uma em cada mão e sempre as mesmas, contendo sabe-se lá o que. Há quem diga que o velho senhor carrega todos os seus pertences nessas duas sacolas; pela postura e pelas roupas rotas, qualquer pessoal se convence de tal afirmação. Receoso de perder o pouco que tem, transporta consigo as duas sacolas a toda parte. Homem negro, magro, de estatura mediana, aparentando uns setenta e poucos anos, mas provavelmente tenha menos; a vida sofrida que teve e já acometido por doenças diversas lhe dá essa aparência de mais idade do que realmente tem.
Ar misterioso, não fala nem dá atenção a ninguém por onde passa; anda em passos vagarosos, de forma quase maquinal, como se sofresse horrores com o peso das próprias pernas, mas com o semblante imóvel, sem esboçar expressão de dor ou sofrimento. Segue o velho senhor com suas inseparáveis sacolas amarelas. Sobe e desce a rua, três ou quatro vezes ao dia, não se sabe exatamente o destino de suas idas e vindas diárias, provavelmente vai à casa de algum parente próximo que lhe ajuda; o certo é que, sempre nos horários de costume e sempre com as sacolas amarelas, ele passa; corpo delgado e curvado, sempre mirando o chão, sem mover a cabeças para os lados.
Os vizinhos pouco sabem a seu respeito; desde que mudara para a rua, não trocara uma palavra com ninguém, certamente teve uma vida normal até ser acometido por alguma doença que lhe penetrara as entranhas arrancando todo viço físico e mental. Agora, esclerosado, vive indiferente ao mundo e preso em si mesmo. Indiferente ao tempo, passou a percebê-lo de forma cíclica, como se a vida toda durasse apenas um dia; ou seja, nascendo pela manhã, ao acordar; e morrendo a noite, ao adormecer. A repetição constante da rotina diária aliada a alguma fraqueza patológica mental, talvez o tenha levado a desenvolver sua própria concepção de tempo.
Curiosamente, uma vez por semana, sua rotina é quebrada; aos domingos, pela manhã, o velho senhor misterioso caminha, no ritmo de sempre, até a antiga igreja da cidadezinha do interior. Ao chegar à porta da igreja ergue a cabeça - único momento em que desvia o olhar do chão - e por alguns instantes, quase que involuntariamente, fica a olhar o topo da igreja e mais a cima as nuvens que se movem lentamente; como se uma pequena fagulha de sanidade esquecida em seu ser esperasse algo sobrenatural que viesse restituir-lhe as forças perdidas com o tempo.
Depois dessa reverência quase inconsciente, resolve adentrar a igreja; vagarosamente e com os olhos fixos a olhar os pés calejados enfiados em sandálias de couro já muito desgastadas de tanto arrastá-las pelas ruas por onde passa diariamente, atravessa a multidão de fiés, indiferente aos olhares de reprovação e críticas, caminha em direção ao altar; aqui e acolá, rumores de reprovação, uma mulher chega a comentar com a vizinha de banco - deve está possuído. Pará em frente ao altar retira uma moeda do bolso e a deposita ao pé do púlpito, vira-se, recolhe as sacolas e sob o olhar desconfiado da multidão que finge não percebê-lo, segue lentamente o caminho de volta, rumo à sua vida rotineira, com direito a uma fuga aos domingos.