O plantão no pronto socorro do hospital Tide Setubal (São Miguel Paulista, periferia de São Paulo) estava mais agitado do que o de costume naquela noite de sábado (que já era bastante dramático diariamente).
Parecia que todos os bêbados da cidade resolveram fazer uma convenção naquele hospital, o pessoal da limpeza não estava dando conta de lavar tanto vômito e o cheiro peculiar da mistura de álcool com não sei mais o que, que saia das entranhas daqueles ébrios se misturava ao odor de sangue e fezes deixando o ar quase irrespirável, e para completar o cenário de guerra, as sirenes das ambulâncias não paravam de soar.
E a noite ia de mal a pior, algumas prostitutas faziam algazarra em volta da colega que era atendida depois de levar uma surra do seu cafetão, enquanto isso um garotão era carregado todo machucado em uma maca perguntando por sua namorada, mas o que ele não sabia é que por causa de sua displicência uma linda jovem nesse momento estava deitada no asfalto de uma rua qualquer coberta por velhos jornais ao lado de uma moto arrebentada. As sirenes não davam trégua e nem bem uma saiu a outra entrou com homem baleado em mais dos tantos assaltos que ainda ocorreriam naquela noite. Foi jogado em uma maca agonizante enquanto ao lado estacionava um fusquinha e saia de dentro um homem com a barriga aberta e dois amigos tentando estancar suas vísceras que teimavam em sair de seu corpo depois de levar uma pexeirada de um conterrâneo durante um briga no forró. Alheia a tudo isso estava uma mãe chorosa com seu filho febril no colo aguardando o atendimento de um médico, ela não sabia, mas algumas horas depois seu filhinho faria parte de uma estatística macabra, ele morreria em seus braços dentro de um hospital vitima de omissão de socorro.
Já não bastasse esse pandemônio, ainda começaram a chegar em disparada  cantando pneus, várias viaturas de policia, que como donos do pedaço, não respeitavam nada nem ninguém naquele local, e ai de quem reclamasse daquele abuso.
Desceram homens de farda cinza que iam abrindo o capô e retirando corpos inanimados imersos em poças de sangue de dentro do que eles chamavam de camburão, a cena era dantesca.
Os homens da lei jogavam os corpos em cima de velhas macas enferrujadas e rindo as empurravam em direção à sala de emergência, onde médicos já acostumados e adaptados ao sistema, só atestavam que aqueles homens estavam mortos.
Só naquela carga fúnebre foram oito os que tombaram, todos jovens, todos pobres, e como diria Caetano, quase todos pretos.
Os corpos foram rapidamente levados para o necrotério do hospital, mas a morte não era motivo de tristeza, pelo contrario a morte parecia trazer alegria aqueles homens, tanto é que eles faziam rodinhas em frente ao local onde os corpos foram deixados e como adolescentes contavam vantagem de seus feitos (depois de terem sido feitas as autópsias, ficou comprovado que todos foram mortos com tiros na testa ou no coração e pela trajetória das balas os disparos foram feitos de cima para baixo, o que evidenciava uma chacina, execução de pessoas ajoelhadas, mas isso não importou muito para as autoridades que logo abafaram o caso).
Os policiais chegavam entravam no necrotério levantavam os lençóis que envolviam os corpos e uns riam outros xingavam e os mais exaltados davam tapas nos rostos dos mortos.
E assim foi até chegar o sargento Siqueira homem rígido, pai de família, policial honesto como poucos, não aprovava certos procedimento de alguns colegas de farda.
Siqueira não roubava e não participava de grupos de extermínio e nem de assassinatos a sangue frio e não aceitava que os homens a seu comando o fizessem, enfim Siqueira era um homem de princípios.
Apesar de alguns não gostarem do sargento, todos o respeitavam, ele chegou cumprimentou seus colegas de farda. Parabenizou os que tinham participado da “batalha” e entrou no necrotério.
O cenário era macabro, várias macas com panos brancos manchados de vermelho cobrindo corpos sem vidas, aqui e ali mãos caídas pareciam pedir socorro.
Siqueira entrou devagar, sua postura era diferente de seus colegas, primeiro ele tirou seu quepe, embora fossem bandidos, agora estava tudo acabado e naquele local a guerra havia terminado agora ele em silencio fazia uma oração rápida por todos que ali se encontravam, pois havia mais corpos, mais pessoas mortas naquela sala, inclusive crianças.
Siqueira posou seus olhos em um pequeno lençol, tentou desviar seus pensamentos, mas não conseguiu resistir e levantou a mortalha, uma lagrima teimou em rolar por sua face ao ver o rosto sem vida daquela criança que parecia dormir.
Depositou o pano com carinho, como se cobrisse um de seus filhos à noite em seu quarto depois de dar um beijo de boa noite.
Passou as costas da mão no rosto para enxugar a lágrima e continuou sua excursão por aquele mundo dos mortos. Parou ao lado da primeira maca e levantou o lençol, ao ver o jovem corpo inanimado pensou no desperdício que eram aquelas vidas jogadas fora, sabia que muitos ali não tinham como ser salvo mesmo, pois eram, apesar da pouca idade, criminosos violentíssimos, ele próprio já tinha visto muitas vitimas dessas pessoas, mas a maioria, em sua opinião não era de má índole só eram jovens e jovem às vezes se perde e cabe aos mais velhos os ajudarem a se encontrar e não assassiná-los friamente.
O sargento continuou sua excursão de horror levantava os lençóis, mirava os rostos sem vida até que levantou o quarto lençol, pareceu ter um choque, ficou paralisado diante do corpo inerte deitado na fria maca, até que se inclinou e abraçou o garoto sem vida e chorou desesperadamente, alguns instantes depois saiu gritando e atirando em direção as  viaturas estacionadas em frente ao necrotério, ainda acertou um tiro na perna de um dos soldados que tinham participado da chacina, por sorte não foi morto ali mesmo, pois seus subordinados, conseguiram dominá-lo a tempo.
Depois daquele dia o Sargento Siqueira foi para a reserva, nunca mais conseguiu dormir sem calmante, mesmo assim toda a noite pelo resto de sua vida o sargento teve pesadelos horríveis daquele dia fatídico, o dia em que ao levantar o lençol daquela maca, viu deitado sem vida com um grande furo na testa, seu filho!
 

Paulo Siqueira Souza
Enviado por Paulo Siqueira Souza em 12/03/2011
Código do texto: T2844327
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