Negodinho
[ Lugar qualquer, um rádio toca]
“Bom dia cidade! Vamo acordar, vamo acordar, são 8h da matina, vamo acordar, vamo aacordar! O dia já acordou, mas o frio é intenso. Pra quem levanta agora, vamo acordar! Acordou? Olha aí, parabéns, ganhou um lindo presente, né não!?
Mas um dia, todo nosso […]”
Enquanto o rádio chiava - voz de taquara rachada - uns ainda levantava; outros, nem saiam da cama. Outros ouvíam o rádio em carro congestionados, pra escola, pro trabalho. Negodinho já trabalha engraxando alguns sapatos, e nem tomava café,mas ganhava o seu trocado. Comer pão com manteiga era o seu maior sonho, e ainda não o realizara.
Lá estava Negodinho_ na testa, suor escoava como esgoto no bueiro. Tava lá, tava cá. Caixa de madeira no ombro, procurando clientela, querendo pão com manteiga - com isso, sempre sonhava -, teimoso como o quê - não sabia se cansar.
De tarde - hora de almoço - ele não passava fome, por que fome, aqui, não passa -estacionada como carro sem ninguém pra estacionar. Tentava na padaria comprar um pão com manteiga, mas nunca comprava. Corria de garçon e padeiro; esbarrava em madame - ela gritava - e ia pras bandas de longe. Indiferença era o que sempre engolia sem nem precisar mastigar - só com um pouco de água. Sempre dura, mas sem tristeza -“tristeza só dá mais fome” - era o que sempre pensava.
Lá estava Negodinho, fosse dia, tarde ou noite, sem final de expediente. Enquanto muitos saem dos escritórios, ele só faz engraxar. Só parava lá pras tantas sem saber sequer a hora, e tinha medo de perguntar - assim era mais feliz, sem saber hora -, e era até bem conformado. Nas margens do rio morto, brincava, tomava banho com detergente dado por flanelinha. Não fazia amizade com os meninos do “Viaadulto” porque esses, brincavam de ser bandido. Que inveja desse neguinho que não tinha tristeza de vida - e olha que sua vida não era fácil -, e só o que não tinha ainda era o seu pão com manteiga. Dormia na estação sem luz, no seco do céu da boca da noite. Cama de papelão, era macia, sempre. Era hora de sonhar.
Na noite tudo acontece, mas ninguém atina pra nada - nem Negodinho, com sono de quase morte. Coisa errada acontece, mas ninguém vê ou escuta nada - também pudera; sabe nem de onde veio; não viu nem ouviu sirene; não viu nem ouviu estampido; não viu nem ouviu mais nada;
[ a noite passa...
[O mesmo lugar qualquer, um rádio toca]
“Bom dia cidade, como sempre são 8h da matina, mas hoje a manhã tá quente, finalmente. Pra'queles que levantaram, vamo acordá, vamo acordá! Que vocês aproveitem esse novo dia. Parabéns mais uma vez [...]”
Lá estava Negodinho. Já era tarde e ele não tinha acordado. Não tava engraxando sapato, não foi atrás de clientela e nem arrumou um trocado. Não correu de garçon, de padeiro e muito menos de madame. Não tomou banho de rio e nem pegou detergente com flanelinha. Não se levantou no dia, dia-tarde ou tarde-noite,
[foisse...
Mas lá estava Negodinho - corpo deitado no chão, na cama de papelão, sonhando sem acordar.
[ “Ah! Agora sim, Negodinho, realiza esse teu sonho! Vai ligeiro, Negodinho!
[Come o teu pão com manteiga...”