A escrita e a inveja.
(Homenagem a Sérgio Porto e tia Zulmira)
Ele ligou tarde da noite.
_ Alô... Olha, cara, essas coisas que você anda escrevendo no jornal, sabe... Sou teu amigo e por isso vou te prevenir. Não pega bem. O meio que a gente vive é um ovo, todo mundo se conhece e você fica aí escrevendo essas provocações. Fico até sem jeito de falar. Mas tem gente importante que já comentou comigo que não gostou.
_ Pera aí, João! Até tu Brutus! Sou jornalista e tenho meu direito de expressão, esqueceu?
_ Mas é que você está mexendo com gente grande, peixe grande. Isso aí não vai dar certo. Depois lá na frente você se prejudica.
_ Olha aqui, meu amigo. Cada um na sua e a vida continua. Você cuida do seu jardim que eu cuido do meu.
A mulher acorda.
_ Que conversa é essa, Zuzu?
_ O João Maurício! Ligou pra falar do meu artigo no jornal. Cretino, filho da mãe! Esqueceu tudo o que eu fiz por ele. Agora porque se acha numa posiçãosinha melhor quer cantar de galo no terreiro alheio.
_ Mas meu bem, talvez ele tenha um pouco de razão... Você é radical às vezes, sabia? Nas opiniões - eu digo. Leva tudo muito a sério. Não aceita que o mundo seja do jeito que é. Tem mania de querer salvar o mundo escrevendo...
_ Caramba, Cristina! Até tu Brutus! Covardia não faz meu feitio. Não sou pessoa de meia palavra! Comigo é assim e pá-ponto: sem papas na língua! Tem que escrever, eu escrevo!
A mulher conversa com a sogra:
_ Dona Dora, seu filho não está nada bem. Pirou, coitado! Ele agora deu de denunciar, de enfrentar corruptos através da escrita, escrevendo pra jornal!
_ Mas não é tudo “meta fora”, minha filha? Pelo menos foi isso que ele disse aqui em casa pra mim mais o Antenor. Que esse negócio de “meta fora” não pega pra ninguém, é linguagem de figura.
_ Não vai adiantar eu explicar agora, dona Dora. Mas é que mesmo no sentido figurado, isso que ele escreve não é coisa boa pra bom entendido no assunto, percebe?
_ Ah , minha filha, agora você complicou tudo comigo. Mas se esse menino anda fazendo algo de errado, ele tem que se corrigir! Esse menino sempre foi assim, Deus do céu, já contei pra você aquela vez que ele...
A mulher conversa com o analista:
_ Não aguento mais o meu marido. Agora ele acha que vai salvar o mundo escrevendo. Além de ganhar mal com o que faz, os poucos que leem aquele raio de coluna querem é tirar a pele dele para fritar pra aperitivo. Ele é mesmo um sem noção como diz a minha irmã. Eu deveria ter ouvido a minha mãe quando ela tanto me avisou. Mas isso também é culpa dela, ela fica dizendo por aí que eu tenho o dedo podre pra escolher homem. E agora também, além dessa mania de ser herói fora de época, coisa mais infantil e besta, também nem comparece como antes... E também...
_ Acabou o seu tempo, continuamos na próxima semana.
A mulher conversa com a manicure:
_ Não aguento mais o meu marido...
A mulher conversa com a empregada:
_ Não aguento mais o seu patrão...
A mulher conversa com a mãe:
_ Não aguento mais esse idiota...
A mulher conversa com uma vizinha no elevador:
_ É, tá quente, mas saiba que o pior é aguentar certas pessoas. Não aguento mais certos homens que...
A mulher conversa com o amante:
_ Ah, João Maurício, não aguento mais...
_ Meu docinho, eu juro que estou fazendo o que posso. Mas ele é tão teimoso...
Patrícia Porto