RELÓGIO PARADO
Matemática nunca tinha sido o meu forte. Embora tivesse sido uma prova difícil eu espera que tivesse um desempenho melhor. Quando o professor começou a distribuir as notas, previa ter ficado abaixo da média, mas nem tanto, entre as dez questões tivera somente dois acertos. Isso mesmo, minha nota foi dois.
Como dizia a minha avó, deu um nó na boca do meu estômago e logo aquele gosto amargo apareceu em minha garganta. Até hoje, quando sinto aquele amargor faço uma analogia com o gosto da derrota.
O professor era um homem inteligente, duro e sarcástico e quando me chamou pelo nome para passar a nota, o fez de um modo mais solene que os demais, falando o meu nome de modo acentuado em cada sílaba e fazendo aquela paradinha na voz que fez com que todos olhassem em minha direção:
- Meu jovem Pau...lo... Ro...ber...to, sua nota é dois. E acrescentou: Para mim, dois acertos e nada é a mesma coisa, porque até relógio enguiçado acerta a hora duas vezes ao dia...
-(puta que o pariu, puta que o pariu, puta que o pariu, falei para mim mesmo naquele pensamento que explodiu na minha mente)...
Depois amarguei ainda mais os momentos seguintes, respirei fundo e acalmei meus sentimentos.
Muito mais tarde consegui perceber o quanto aquele momento repercutiu em minha vida, norteando os passos que fariam de mim um profissional de engenharia.
Relógio parado, relógio parado, relógio parado!!! Gritavam os colegas na saída da sala.
- Relógio parado é o cacete e dei uma canelada no mais fraco e abusado.
Cheguei em casa amuado e triste, me encolhi no meu canto e não quis conversa com ninguém, sentindo-me um fracassado e infeliz.
Não demorou muito e minha avó achegou-se a mim, me fez um carinho e disse:
- Então, não vai me dizer qual foi o problema?
Continuei amuado durante algum tempo, mas como sempre acontecia contei-lhe o acontecido.
Ela afagou os meus cabelos e disse que na vida, cada fato, acontecimento ou situação, por pior que fossem, por mais que nos deixassem atormentados, era um fato importante como ensinamento para nós.
- Vó, todos debocharam de mim...
- Está certo, você ficou chateado, magoado e está se sentindo infeliz, mas isso também é importante... é para saber o quanto você precisa aprender com essa situação, para você não se esquecer...
- Mas vó, o que eu mais quero é esquecer tudo isso...
-Agora não, você não pode esquecer porque você ainda não aprendeu a lição, depois quando essa lição já tiver sido aprendida e não mais for necessária, você vai se esquecer disso e achar que tudo o que passou, passou e não é mais importante guardar na memória... O tempo se encarrega de tudo.
Passados uns dias minha mãe me apresentou a uma explicadora de matemática, a dona Margarida que repassou comigo todas as questões da prova, quando pude constatar que meu raciocínio para equacionar os problemas estava perfeito, mas havia errado nas contas intermediárias o que fazia com que o resultado final desse errado.
Em poucos minutos a explicadora demonstrou que meu raciocínio era lógico e conseguia equacionar os problemas, masque isso não era tudo. Se cada conta intermediária não estivesse certa, eu provavelmente continuaria sendo um relógio parado...
- Você conhece o caminho, mas se perde nos atalhos...
Então ela passou exercícios de contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir. Eram muitos exercícios diários e durante a semana inteira. Não havia descanso nem aos sábados ou domingos.
Eu me revoltava, dizia que domingo, como dizia o padre, era o dia do Senhor e, portanto, devíamos descansar:
- Que coisa chata, quando penso terminou vem mais e mais.
Quando estava no auge da minha revolta a minha explicadora me disse:
- Esses exercícios massacrantes têm duas finalidades, a primeira para você ficar treinado em fazer contas de forma correta e a segunda, criar em você o hábito de estudar. Todos nós dispersamos nossos pensamentos e com isso não conseguimos obter o melhor desempenho do nosso cérebro. Quando se concentra num problema, dirigindo todo seu esforço somente naquela direção, não nos dispersamos saindo do nosso foco. Fazendo assim você vai sentir que a matemática não é difícil, tudo aquilo que queiramos aprender será fácil, nós é que criamos as dificuldades, transformamos os pequenos problemas em verdadeiros monstros.
Quando reclamava de alguma dificuldade, ela me lembrava sempre:
- Você está alimentando o seu monstrinho... Assim ele vai se tornar cada vez maior e maior...
Quando errava uma conta, tinha que repetí-la. Depois de muitas repetições me conscientizei que o melhor a fazer era garantir que estava fazendo a conta corretamente para evitar trabalhar em dobro e assim aprendi a usar a lei do menor esforço.
As notas de matemática e também de outras matérias melhoraram e comecei a disputar os primeiros lugares na sala.
Fiquei deveras satisfeito, meu amor-próprio estava estampado no sorriso, os colegas que antes me tratavam com chacotas eram agora os primeiros a me bajular, sentavam-se perto de mim nas provas com intenções de pegar colas.
O relógio funciona e marca todas as horas, meus parabéns, foi assim que aquele homem crítico, ferino, me falou quando anunciou a minha nota, alguns meses depois daquele fato que tanto marcou a minha vida, sua nota é nove!
Quando fiz o vestibular para a faculdade, interiormente agradeci aquela crítica do meu professor de matemática, ele sabia o que estava fazendo, mexeu diretamente com meu amor-próprio.
Muitos anos depois, já idoso, relembrei o fato com um colega de turma e nesse momento por um lapso de memória não consegui me lembrar do nome do nosso professor, mas me recordei com perfeição das palavras da minha querida avó quando disse: - quando você tiver aprendido a lição, esse fato não mais será importante para você, então você o esquecerá.
Preferi registrar a estória antes que caísse no esquecimento, enquanto ela ainda é importante para mim.