UM PEREGRINO EM FUGA
Era uma quarta-feira, o dia estava frio e úmido, dia comum em uma metrópole cinza e fria como São Paulo. Neste dia Ari não havia ido trabalhar, o despertador tocara às 5 da manhã, mas ele continuou na cama e adormeceu por mais duas horas. Levantou-se às 7 horas, sentou-se na cama e pensou sobre a sua condição de existência. Ele esquentou um resto de café que estava em sua cafeteira, comeu um pão com mortadela e resolveu que naquele dia daria uma volta pela metrópole, queria sentir o cheiro da poluição, ouvir a voz da cidade grande, uma mistura do barulho de pessoas, carros, aviões, sirenes da polícia e de ambulâncias, enfim uma voz representativa do caos urbano que atraía Ari de forma antagônica. Pois ele não gostava daquele caos e sonhava em um dia poder voltar para a tranqüilidade de uma cidade pequena, como a que ele havia crescido.
Ari era um homem solitário, havia se formado professor e estava, como praticamente todos os seus colegas de trabalho, insatisfeito com a sua profissão. Professor de uma escola pública não é grande coisa em um país que não valoriza o conhecimento. Para ele que havia estudado grande parte das obras dos filósofos existencialistas, a sociedade estava caminhando para o caos social, cega e alienada da sua condição de existência. Ari peregrina pela cidade naquele dia frio, tentando observar as falhas de um sistema que preconiza a oportunidade para todos, mas que condena a maioria dos seus súditos e seguidores à marginalidade.
Aquele homem decidido a se converter em um peregrino naquele dia, resolve começar a sua viagem urbana caminhando a pé. Ele anda por uma via principal da zona Sul da capital paulista, logo começa a se sentir incomodado pelo barulho dos automóveis, que vinham em uma velocidade sobre humana em sua direção. Então, ele resolve parar na calçada e observar aquelas máquinas, ele reflete sobre o ser humano dentro delas. Para Ari, os automóveis eram símbolos da destruição humana, dominavam os espaços das ruas e avenidas e poluíam a atmosfera. Se um homem, ou uma mulher teimassem em andar no meio da via, provocariam a fúria dos seres apressados dentro de seus veículos, e se uma criança resolvesse que naquele dia iria converter a via expressa em uma praça, ou em campo de futebol? Ele então, dar um sorriso irônico. Os automóveis apressados em conquistar mais dinheiro, passariam por cima das crianças, ou logo chegaria a autoridade para garantir o uso segregado do espaço urbano. E assim, a vida seguiria com sua fluidez regida pelo sistema capitalista. O caminhante olha a longa avenida que se estendia a sua frente, sente-se cansado, começa a ficar incomodado com os fluidos do antagonismo que saiam do seu corpo. Estava frio naquele dia, mas ele suava, sentindo um calor estranho. Se sente vencido naquele momento, e resolve pegar um ônibus.
Ainda não era meio-dia e Ari já se sentia cansado. Ele entra dentro do ônibus e observando as pessoas a sua volta, percebe que a maioria estão fadigadas, as poucas que ainda sorriem, o faz com certo limite. Quando o ônibus entra em uma das principais artérias da cidade, Ari faz uma analogia ao corpo humano, ele se sente como uma partícula de sangue que dá vida ao sistema. Ele desce do ônibus, sobe em uma passarela e pensa, posso obstruir esta artéria e atrapalhar este sistema por alguns minutos, é só me jogar daqui para baixo, o meu corpo se transformará em uma barreira ao sistema, mesmo que momentaneamente irei obstruí-lo por um tempo. Ari fica parado ali por alguns minutos e pensa em coisas não resolvidas da sua vida e segue em frente.
Chega no coração da metrópole, o caminhante percebe várias pessoas marginalizadas circulando por aquele lugar, ele pensa, este órgão da cidade se encontra doente, com parte do seu sangue ralo e enfraquecido. Cansado, ele se senta na escada da Catedral da Sé e começa a observar o movimento, no meio da praça ele percebe um monumento indicando os pontos cardeais, mas não guia os seres que ali estão. Pois estão somente cumprindo as suas labutas diárias. Logo senta ao seu lado um homem, maltrapilho e que demonstrava a fome através de seu semblante. O homem logo puxa assunto com Ari, ele diz:
--Está frio hoje não tá?
Ari responde:
--Sim, esta cidade é fria, mas climaticamente há outras mais frias no mundo.
O morador da praça logo se apresenta a Ari:
--O meu nome é João Manoel, sou pernambucano, e estou em São Paulo há 30 anos.
Onde você mora? Indaga Ari.
--Moro aqui mesmo na praça.
E com ironia e com um sorriso debochado no rosto, João Manoel completa:
--Endereço valorizado o meu não é?
E retribuindo o sorriso, Ari diz:
--Verdade, muita gente que mora na periferia e tem que levantar às 03 da manhã para vir trabalhar no centro da cidade, devem ter inveja do seu endereço.
Então, os transeuntes que passavam por ali naquele momento, ouvem altas gargalhadas dos dois homens.
Ari, que tinha um lanche preparado para aquele dia o divide com João e logo a conversa dos dois homens se aprofunda. Ari percebe que João Manoel tinha o seu próprio universo e concepção de mundo. Ari pergunta a João:
--Como você veio parar aqui na praça, foi a sua única opção de moradia?
João Manoel, diz a Ari:
--Para te responder esta pergunta, eu te convido a dar uma volta comigo.
Os dois homens se levantam da escada da catedral, deixando-a imponente as suas costas, observando os dois homens seguirem tentando desvendar as suas existências. Eles atravessam a praça, e depois a rua, param em frente a uma livraria e Ari mostra um livro na vitrine para o seu companheiro. Ari fala a João:
--Este livro era para ser uma espécie de manual para mudar as nossas vidas, mas com o passar das décadas e dos séculos, ele se tronou um manual para os opressores, pois este livro explica o funcionamento do sistema capitalista.
João ler o título do livro em voz alta:
--O capital, Karl Marx. E completa dizendo:
--Um sindicalista que participava de uma manifestação na praça, uma vez me falou deste livro. Ele disse que iria acontecer uma revolução que mudaria as nossas vidas. Mas acho que alguma coisa deu errado, pois a revolução não aconteceu.
Os dois homens, andando pela calçada, entram pela Rua Direita e seguem até a rua Barão de Itapetininga. João Manoel com um brilho no rosto aponta na direção de um grande prédio e diz a Ari:
--Está vendo este prédio? Eu o ajudei a construir, mas não posso entrar lá dentro. Este é só um exemplo que quero te dar caro amigo, pois existem várias outras coisas nesta cidade que ajudei a construir e o que esta coisa que você me fala, chamada capitalismo me deu em troca? Somente uma praça para morar, talvez porque ele ainda precise de mim, e quando precisar me encontrará na praça.
Ari, ao ouvir as tristes palavras do João, se lamenta e pensa: todos nós trabalhadores não estamos longe desta realidade. Mas como superar isso?
João Manoel fica com o semblante triste e decide voltar para a Praça da Sé, Ari o acompanha, neste momento já eram umas 5 horas da tarde. Os dois chegam á Praça da Catedral da Sé. Ari ajuda João a encontrar um caixa de papelão que não esteja molhada, que irá servir de cama para o morador da praça naquela noite.
Ari decide continuar a sua peregrinação pela metrópole, pensa em ir à Rua da Gloria. Ele caminha em direção ao seu novo destino, quando passa na frente de um hotel, ali havia algumas mulheres paradas, pareciam que esperavam alguma coisa. Uma delas chama Ari:
--Ei psiu!
Ari olha e fica um pouco envergonhado. Continua o seu caminho, sente algo que parecia estar crescendo dentro do seu corpo, a sua mente o instiga a voltar e atender ao convite da moça. Ele fica um pouco perturbado com aquela situação e tenta seguir em frente. Mas parece que um instinto animal guia os passos do caminhante e o leva a porta do hotel. Ele pára do outro lado da rua e não ver a moça que o havia chamado, imagina o que ela estaria fazendo naquele momento e dá um sorriso irônico. Havia outras mulheres no local, uma delas lhe faz o mesmo convite e Ari não consegue resistir. Pois ele havia pensado que um coito é uma necessidade fisiológica e há tempos não tinha um contato sexual. Ari se aproxima e a garota diz:
--Olá moreno!
Ari tinha feições de um típico latino-americano e a pele cor de jambo. O semblante dele muda e ele fica com aquele ar de safado, pois o instinto que ele sentia ocupava a sua mente e ele só observava o corpo da garota que o excitava cada vez mais. Ela então o chama para ir a um dos quartos do pequeno hotel. Ari fica ali por 40 minutos e sai se sentindo mais humano, pois os momentos com a garota de programa o fez esquecer de todas aquelas ideologia que ocupavam a sua mente.
Enquanto Ari descia a escada acompanhado pela garota, ele a pergunta:
--Qual o seu nome?
Ela o responde:
--Pode me chamar de Ângela.
E com um sorriso no rosto ela completa dizendo:
--Pois sempre que você precisar, estarei aqui para ser o seu anjo e te levar para o céu. Mas não se preocupe, a viagem é de ida e volta, eu te garanto.
Já se passava das 9 horas da noite, Ari continua a caminhar envolto pelos prédios da cidade, com as luzes dos automóveis provocando um brilho opaco em seu rosto. Observa as pessoas nas ruas e dentro dos ônibus, voltando para casa, ver o cansaço estampado em seus rostos. Ele finalmente chega a parada de ônibus, e ver ali muitas pessoas de semblantes cinzas, estão ali dependentes da chegada de uma máquina que as levarão para a casa. O ônibus chega roncando como um monstro furioso, Ari adentra dentro dele.
Após passar 4 horas de pé dentro do coletivo, o cansado peregrino chega em casa e reflete sobre tudo o que viu na sua pequena peregrinação. E pensa que se repetisse aquela aventura poderia entender melhor o mundo. No dia seguinte, Ari novamente não vai ao trabalho, pega todas as suas economias e decide peregrinar pelo mundo, por outros lugares e dialogar com as pessoas que realmente buscam a liberdade. Ele então diz:
--O dinheiro logo acabará, mas e daí! Tenho pernas para caminhar.