A aura

Na índia, se alguém abre a porta de casa para sair e se depara com uma viúva, por exemplo, não sai de casa. Essa pessoa volta, se lava, troca de roupa, e refaz todo um ritual antes de colocar seus pés na rua. Lá, isso faz parte da cultura. Dizem que a sorte diária se determina de acordo com a aura da primeira pessoa que se vê naquele dia.

Muita gente aqui também tem esse tipo de superstição. Dona Fia era assim. Tinha sempre muito cuidado com quem encontrava de manhã.

Já tinha casado todos os filhos. Morava com o marido em um bairro sossegado do subúrbio. Nunca se ouvira nada que desabonasse a imagem de Dona Fia.

A velha senhora evitava ver certas pessoas no começo do dia, que segundo ela, possuíam aura ruim, dizia que atraia mau agouro, e evitava o máximo possível certos encontros matinais. Um dos evitados, morava em frente a sua casa: um sujeito conhecido como Chico da Maria. O homem tinha fama de preguiçoso e de viciado em jogo, segundo os comentários da vizinhança, mentia mais do que bula de remédio para emagrecer, o que se via era que adorava uma cachacinha e que vivia à custa da mulher. Apesar de não trabalhar, o homem gostava de acordar cedo, Dona Fia dizia que era para poder ficar mais tempo sem fazer nada. Sentava-se em um banquinho em frente sua casa, esperando o Seu Manoel abrir o bar da esquina. Chico dizia que cachaça de manhã curava gripe. Ele pelo jeito parecia sempre gripado. Gripado nada, era pigarro causado pelo cigarro que ora estava no canto da boca, ora atrás da orelha.

Dona Fia gostava de varrer a porta todos os dias de manhã, quando a sombra da casa dava para a rua, mas desde que Chico se mudara para a casa em frente, teve que modificar seus hábitos, pois ele não saia do banquinho enquanto o armazém não abria. Enquanto Chico não sumia da porta, Dona Fia não colocava o nariz para fora. Dona Fia dava uma assuntada para ver se ouvia os pigarros de Chico, se não ouvisse nada, era sinal que ele já tinha ido, sabe-se lá para onde, daí ela varria.

Como eram vizinhos de porta, esse encontro matinal era questão de tempo.

Já avançado em anos o marido de Dona Fia teve um mal estar repentino pela manhã, a mulher teve que pedir ajuda, Chico tinha acabado de se sentar em seu banquinho quando o pessoal da ambulância chegou e pediu-lhe informação, como Dona Fia não abriu a porta de imediato, Chico se voluntariou a bater . Quando abriu a porta e se deparou com aquele rosto encardido bem na sua frente, Dona Fia arrepiou-se. Chico ficou com o crédito devido ao fato dela passado dois dias no hospital com o marido, se não fosse o encontro na porta, logo cedo com o vizinho indesejado, teriam voltado para casa no mesmo dia.

Um novo encontro demorou muito a acontecer. Só que desta vez, foi Chico que viu Dona Fia primeiro, ela só o viu depois que ele pigarreou. Ele se levantou antes de todos em casa e saiu, sem ver ninguém. Estava passando em frente do portão da velha não ouviu som algum, abriu sua porta e passou os olhos, e deu de cara com Chico, que a viu espantado.

O que aconteceu naquele dia com a velha senhora? Nada.

Horas mais tarde, Dona Fia viu uma movimentação anormal na casa em frente. Espiou e pode ler, ao lado do portão, uma placa com os dizeres: “Luto em família.”

Chico morrera no bar do Seu Manoel, com um ataque fulminante do coração.

Meire Boni
Enviado por Meire Boni em 09/03/2011
Reeditado em 09/03/2011
Código do texto: T2837281
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