PINGA TÁ BARATA

Eram aproximadamente oito horas da manhã, e ainda não tínhamos chegado ao nosso destino. Como o terreno era arenoso, as vezes o percurso ficava um pouco difícil devido a formação de dunas na estrada que poderiam fazer com o que o veículo atolasse. Havia chovido no dia anterior, e em alguns pontos havia diversas poças de água. O sol estava brilhante, secando a terra rapidamente e com isso alguma poeira era projetada na estrada. Uma e outra cancela para abrir. Assim, íamos nos aproximando da fazendo do Sr. Albino, moço pobre, mas trabalhador e de grande influência política na região em que morava, pois era ele quem cobrava das autoridades o suprimento das necessidades dali: estradas, água, sementes, visita de técnicos, e com isso foi eleito presidente da associação de moradores da região.

Por várias vezes, Luiz meu assistente e eu tínhamos ido ali fazer pequenos serviços de agrimensura e apaziguar pequenos conflitos de terras, dividindo-as e lavrando os documentos ali mesmo.

Desta vez era diferente, ia dar para ganhar um dinheirinho. Iríamos dividir uma grande fazenda e após, legalizar os documentos. Como tinha muitas pessoas envolvidas, e a complexidade do serviço, pois, era necessário a realização de um serviço preliminar e depois retornar, bem como a análise de documentos, certidões de cartório e outorga de procurações, havíamos marcado uma reunião na sede da associação às l4:00h, distante aproximadamente um quilômetro da casa do Albino.

Após chegarmos, esticar as pernas, fomos recebidos pelas brincadeiras dos filhos do Albino, pois ele havia saído fazia uns três dias, para uma folia, e iria vir hoje a fim cumprir o combinado.

Às nove horas e pouco o almoço já estava pronto, sendo servido. Apesar da ausência do anfitrião, não nos mostramos preocupados, afinal, não era todo dia que tínhamos um franguinho caipira com arroz, cebolinha, quiabo, angu, feijão com pele e torresmo, além de diversas folhagens. Luiz vibrava, e exclamou em tom de brincadeira: hoje eu morro. Apesar de eu comer pouco, numa hora dessas também abusava.

Lá pelas treze horas, após a sesta, Albino nosso anfitrião, apontou lá longe, pisando pesado na areia, com um violão debaixo do braço e com à alegria de sempre. Cumprimentou-nos e juntamente com seus filhos fez uma apresentação musical com violão, viola, pandeiro, acordeom, rebeca, uma recepção comum ali. Ele não chegou bêbado, porém, cansado. Veio no rastro do trato, o trato para aquele dia e tinha, como sempre, de ser cumprido.

Ele comeu alguns petiscos e arrancamos para a sede da associação, onde nos encontraríamos com interessados diretos na divisão.

Ficamos assustados ao chegar! Não vimos ninguém, ou melhor, havia algumas mulheres fazendo farinha e outros afazeres, pois, na sede da associação havia fábricas de farinha e rapadura. Em sua volta possuía três casas, dois botecos e um campo de futebol. Assentamos e ficamos a espera dos interessados. Como dizia o Luiz. “Acho que dessa vez nós vamos ganhar um dinheirinho”.

Após cerca de uma hora de espera, Balbino chamou um menino e disse:

__Vai na casa de manezito e chama ele. “Fala que o engenheiro taqui. Veio midi as terra”.

Antes mesmo que o menino desse o primeiro passo gritou!

__ Lá vem o zé soco, vou pedir a ele prá chamar o resto da turma, de cavalo é mais rápido. E acrescentou: “anda mimino, ele vai prun lado ocê pru ôto”. Pois, o menino achou que com a chegada de um cavaleiro sua missão seria desnecessária.

Contudo, sentiu-se importante ante a necessidade de seus serviços apesar do cavaleiro. Na realidade, zé soco era para ir para o outro lado, chegou caindo do cavalo, dando um susto em Luiz que tentou escorá-lo, pois balançava como um boneco “ teimoso” aquele que balança e não cai. Neste balé hípico digno de uma competição, disse:

___Pinga tá barata! Agora o trem tá bão! Com um real compro quais que um garrafão. O governo tá apoiano a frabricação de pinga.

Albino replicou: É verdade, a nossa associação vai fazer um alambique.

Nessa altura, o Luiz e eu já estávamos preocupados, nosso serviço estava indo por água abaixo, ou melhor, por pinga abaixo. Uns trinta minutos depois, chega nosso enviado, o menino e avisa:

___ Manezito tá escornado. Nun guenta levantá não. Bebeu muito. Pinga agora tá barata, até o guverno tá apoiano.

“Eta diacho, nun vai dá prá cumeçá hoje!” Exclamou o Albino.

É vem um lá disse o menino, apontando com o dedo. Viramos o rosto e vimos próximo ao campo de futebol, uma nuvem de poeira levantar, parecia o início de um redemoinho.

___É Pedro Marreta, disse o coitado do Albino, que já apresentava um ar de cansaço e tristeza, vendo todo seu esforço em abandonar a folia mais cedo para cumprir um trato, em vão.

___Pera ai, pera ai, pera ai, gritava o Pedro, que já chegou ofegante. Luiz disparou a rir às escondidas, pois, o Pedro tinha quase dois metros de altura e vinha bêbado em cima de um jegue, arrastando os pés no chão. Pés esse que parecia não fazer parte do corpo dele, devido ao estado que se encontrava, acompanhando todo o perfil do terreno por onde ia passando, sem se importar com nada. Se tivesse uma pedra o pé batia nela, se tivesse um toco, a mesma coisa acontecia, numa elevação ela subia entortando para cima, numa depressão ele envergava com o bico para baixo, no plano ia de lado, numa poça d´água ele se enchia, e assim se apresentava, todo sujo de areia, terra, e lama. E assim dialogou com o Balbino.

___Fiquei sabeno que o mididor chegou, vim prá riunião

___Num vai tê não Pedro. O povo nun veio.

___Isso é irresponsabilidade, vamo chamar o povo. O Home não pode perder a viaje não.

___Ele num vai perder não Pedro. Vamo prá casa durmi. Amanhã vortaremos. Já mandei avisar todo mundo.

___Mas e mariinha de Vicenzo, eles que mora mais longe?

___Já mandei avisar tomem. Nun preocupe Pedro amanhã tudo será resolvido.

___Num sei não. Tá todo mundo quereno dividir as terra, prá trabaiar no que é seu. Mas na ora mesmo some. Intão tá. Amanhã vortarei. Vamo tomá uma dotor?

___Obrigado disse. Na hora da janta.

Na casa do nosso anfitrião, bebemos um aperitivo e jantamos uma deliciosa comida caseira. Luiz como sempre, disse uma das suas: “ Desse jeito pode demorar Albino que vamos ficando”. Todos riram.

Após o jantar, contamos casos da roça, de caçada, de defunto e depois, fomos ouvir a família do Albino apresentar um concerto musical, com músicas sertanejas. Todos tocaram muito bem. Após foi nossa vez de mostrar-lhe através do teodolito mostramos a lua, e o planeta júpiter, conversamos sobre o universo e todos ficaram curiosos e alguns, os mais velhos, até incrédulos. As crianças, devido a formação escolar, já tinham mais noções e capacidade de entender alguns conceitos.

De manhã bem cedo, fomos para a associação, palco de todos os acontecimentos preparatórios para a divisão das terras dos herdeiros de Lesbino de Maria. Esperamos muito. Albino dizia que viriam logo. Bem, disse:

___ vamos esperar até as dez horas, se não vierem vamos embora.

É, Albino, falei: não entendo uma coisa, todos os dias ligavam para o escritório querendo que viéssemos logo, até que estabelecemos a data de ontem.

As nove e cinqüenta começou chegar um e outro, uns bêbados outros ressacados, mas, alegres e brincalhões. Só que com quase todos bêbados, ficou difícil estabelecer diálogo. Falaram de medicina, direito, agrimensura, etc. O certo que eu próprio já estava desmotivado, nunca tínhamos deixado de realizar um serviço, ou perdido uma viagem, essa era inevitável. Era nossa primeira vez. Após falar sobre o nosso intento, que iríamos deixar o serviço para outro dia, houve um alvoroço: “tá doido, nos precisamos da terra dividida, temos que trabaiá nela, a chuva já cumeçou, dá un jeito dotô, as terras do Balbino ficou boa, por isso nós pidimos ele que indicasse o sinhô, dá um jitinho”. Na realidade não havia diálogo para fazer um acordo sobre terras. Divisão amigável é um acordo e não poderia ser feita com ébrios.

Para não perder a viaje, Balbino disse:

___Dotô, tem aquela gleba que lhe falei, do moço que quer requerer usucampião. Lá no seu Notê, gente boa. Bebe uns golin mas acho que agora tá parado, pois tava doente.

Ele nos explicou como chegar lá e lá fomos nós, para não perder a viagem. Andamos um bocado, em estrada ruim, ora com buracos, ora com dunas de areia, mas o carro ia, abria-se uma cancela aqui, um colchete ali, e fomos penetrando mais pelo sertão. Quando chegamos lá, ele não estava, sua esposa nos atendeu, disse que ele havia saído cedo. Falamos de nosso objetivo ali, ela ficou ansiosa, precisava da planta da pequena posse que tinham, para legalizar os documentos via usucapião e vender a um interessado, atual confinante, que aguarda somente isso, pois, iriam adquirir um terreninho do mesmo tamanho, dois hectares, próximo a casa da mãe dela, a uns 10 Km dali, com água e vizinhos próximo, essa era sua grande oportunidade, não teriam condições de levar um agrimensor ali.

__Num sabia que ocês vinha prá preparar alguma coisa. Nun tô teno nada, nem café, tinha só um poco de farinha. Vou procurar notê. Deu uns três passos e voltou, nun adianta não, ele tá no buteco bêbado e sem dinheiro. Pinga agora tá barata, o guverno tá apoiano fabricá pinga.

Já eram onze horas aproximadamente, e dissemos a ela que iríamos começar o levantamento.

__O que? Ela perguntou.

__A medição, disse.

Ela nos mostrou os limites, todo cercado, e fomos fazer o serviço. Enquanto isso, ela boquiaberta não sabia o que fazer. Vimos que ela estava com a boca suja de farinha, parece que estava almoçando alguma coisa com farinha quando chegamos, um prato no colo, cabeça baixa, pensativa... Senti que aquela farinha, seca estava lhe entalando, pois ficava meio ofegante, ainda mais somado com a situação que estava vivendo. Ao nos ver trabalhando, e disse:

___doto, nós nun tem dinhero pra pagá não.

___Quem “paga nós” é o governo, pode deixar.

Desde a chegada vimos que tínhamos que fazer aquele serviço de graça, não poderia voltar sem fazê-lo.

Lá pelas treze horas terminamos o serviço, com fome e sede. O Luiz estava prá subir nas paredes de tanta fome. Arrumamos os equipamentos, e nos despedimos da senhora, que desabafou:

___ ETA meu Deus, notê tá lá bebendo, nun tá nen ai. Ses discurpa, nun ten nada prá cumê. Água boa tem que buscá longe. Discurpa seus moço.

___Não tem de que, dissemos. Breve nos lhe enviaremos a planta, através do Balbino.

___Santo ome aquele, ajuda nós, ai ó, se nun fosse ele, o sinhô nun tava aqui.

Já no escritório, após ter concluído os serviços, assinado a planta e o memorial e tê-los entregue ao mensageiro do Balbino, lembrei-me de quando era criança: fomos pegar do-mi-ré , um passarinho, e levamos dois para servir de “chama”. No caminho, houve uma briga de uns meninos e nós ficamos no meio das pedradas, algumas pegou na gaiola, quebrou a talisca e um escapou. Ficamos perplexos, agora tínhamos a abrigação de apanhar no mínimo “um”, para as coisas ficarem como antes. Pois que caçadores eram esses que deixavam os bichos escaparem em vez de capitura-los? O pior é que mais adiante, um colega ao colocar a gaiola no chão, não viu, e a porta dela pegou num garrancho que serviu de alavanca. A medida que a gaiola descia, a porta subia e o do-mi-ré foi embora. Voltamos com vergonha, sem nenhum do-mi-ré.

Era uma pequena analogia ao serviço do Balbino. Fomos para ganhar dinheiro, acabamos gastando, com viagem, e trabalho de graça, mas ao contrário da caçada do do-mi-ré, não sentimos vergonha, pois sem querer fizemos uma longa viagem para ajudar uma pessoa que sozinha estava sofrendo no sertão e aquele serviço que para ela parecia impossível, poderia ser a alavanca para mudar de vida.

-Este episódio aconteceu em 1995. Em 1995 mesmo fizemos alguns serviços na região e em 1996, fizemos a divisão dos ébrios. Notê e esposa, venderam a terra e adquiriram outra bem melhor. O Balbino candidatou-se a vereador e foi eleito. Os nomes foram alterados para proteger a identidade das pessoas.

Maio/2004.