Reveillon de luto
A chuva que caíra durante todo o dia resolvera fazer uma pausa ao cair da tarde daquele primeiro dia do ano, para que o caixão descesse vagarosamente à cova fria e úmida. O sol, em luto, não se tornou testemunha e as nuvens escurecidas pactuavam com o momento de dor, emoldurando aquele quadro insólito.
Estouro de rojões, restos da noite do réveillon ainda se faziam ouvir pelos bairros vizinhos ao campo da última morada, contrastando com o cenário fúnebre, em que se ouviam soluços sufocados, lamentos repetidos, pela perda brusca do ente querido.
Consternados, os familiares e amigos mais próximos fitavam pela última vez o corpo inerte no caixão, cada vez mais distante, no seio da terra.
Difícil neste momento aceitar a dura realidade da morte, ainda mais da forma em que ocorrera. Há poucos dias, ainda com saúde, o nosso amigo demonstrava o seu doce estilo de vida, com muito trabalho e muita alegria também.
Era um batalhador e rodava quilômetros e quilômetros na dura tarefa de vendedor, dos bons, diga-se de passagem. Conhecedor profundo da atividade, zelava pelos seus clientes, que se tornavam cativos, pois eram bem atendidos. Era um professor no tocante a conhecer a fundo os produtos que oferecia, fornecendo todas as informações necessárias, fator que facilitava o fechamento dos negócios. Tudo com extremo bom humor. Com isto, espalhou o seu nome para todos os recantos.
O bom humor era a sua marca também nos dias de folga. Mais ainda, pois estava rodeado de amigos. Aí, esbanjava a sua alegria contagiante, o alto astral de um verdadeiro embaixador do riso, personagem central nos encontros festivos, organizador e animador das festas. Era o “cara”. Já viu aquele sujeito “bacana”, boa gente. Era ele. Amigo leal, solidário ao extremo, pronto para todos os momentos, super atencioso.
Era um craque nos conhecimentos gerais. Inteirava-se pelo rádio, TV, revistas, jornais e internet, acompanhando todos os assuntos de política, futebol, música, tudo, tudo. Torcedor de futebol, tinha lá o seu clube, cuja bandeira o acompanhou naquele momento final.
Um gosto musical variado, com ênfase para o samba, a música brasileira (e ele sabia o nome dos intérpretes e dos autores) e cantava junto, com jeito e ginga, lembrando os bons tempos de Pompeia.
Um ouvinte assíduo do futebol pelo rádio, um comentarista dos esquemas táticos dos treinadores e da atuação dos futebolistas. Dava a sua opinião e ouvia a dos outros, na forma como deve ser o bate-papo, a discussão sadia, a comunicação em geral.
Nas suas folgas era um bom de “garfo”, até mesmo compensando a alimentação irregular durante as suas viagens, com a correria do dia-a-dia, no atendimento aos clientes, de cidade em cidade, com horários desencontrados, ou até mesmo nas convenções de empresas que representava. Depois de se alimentar, não faltavam elogios à cozinheira. Era sempre grato. Do seu jeito. Fazia parte.
Fazia planos e parecia estar próximo o momento de iniciar uma nova etapa de vida, ao lado de sua amada, uma companheira de excelentes princípios e leal ao extremo, que completaria a sua felicidade. Dia que não chegou e não chegará, pela grave enfermidade que o levou em poucos dias.
Lá estava a cova funda e fria. Neste instante, a terra despejada cobria todo o caixão. Era a finalização daquele ato dramático, melancólico, real.
Os pingos de chuva voltaram como a verter lágrimas. O sol permanecia escondido e as nuvens, ainda escurecidas continuavam a dar o tom de tristeza naquele primeiro dia do ano.
E o estouro de rojões, restos da noite do réveillon ainda se faziam ouvir pelos bairros vizinhos, como a dizer que “a vida continua...” e contrastavam com o cenário fúnebre, de soluços sufocados, pela perda brusca do ente querido. Muito querido!!!.