I M O R T A L I D A D E *
Acácio tinha uma conversa agradável, embora apreciasse cervejas, nunca foi inconveniente em seus raros excessos, não fazia o gênero do bêbado insuportável. Sempre discreto, cuidando com o dizer correto e bem soletrado das palavras, com um vocabulário acima da média, nunca dizia gírias, renegava o chulo e o vulgar, sem ser, contudo, esnobe ou um pernóstico metido a intelectual. Naquele dia, todavia, dissertava de forma reflexiva, parecendo, por vezes, que não tinha interlocutores, e se encontrasse sozinho, falando consigo mesmo.
- O que é a imortalidade ? Levantou o copo e o colocou sobre a mesinha, sem tocá-lo, absorto em sua própria fala. Saiu-se com essa pergunta, imprópria, diga-se, para o ambiente festivo das festas carnavalescas, que tomava as ruas adjacentes, com suas balbúrdias e as marchinhas de carnaval envolvendo a todos, quisessem ou não. Trazia um tema filosófico, existencialista, para o seio da conversa que se pretendia leve, de acordo com o ambiente.
-Todos seremos imortalizados, por momentos que sejam, seremos lembrados quando de nós nada mais existir que cinzas... ( continuava na sua fala, repito, como se não estivéssemos ali, ou seja, eu não estivesse presente)
- Não estou certo ? ( parecia, por fim, dar-se conta que não estava só)
Lembrar-se-ão de nós ( adorava o uso do pronome na forma de mesóclise), seja num repente, numa fugaz lembrança...qualquer detalhe que nos particularize, então seremos ressuscitados naqueles fugidios instantes, mesmo que somente nas lembranças de alguns contemporâneos retardatários no tempo...
- Entraremos na conversa qual fantasmas ressurgidos, chamados às pressas, e, tal qual chegamos, inusitados, de volta retornaremos para o ostracismo da inexistência, assim que findar o assunto. Voltaremos ao nada, até que sejamos relembrados, possivelmente por atos menores, visto não sermos celebridades científicas, artistas, políticos ou outros que, para o bem ou mal, marcaram suas pegadas... De nós, talvez se lembrem, de fatos corriqueiros, assim “lembrou-me fulano” que sempre dizia isso, ou a forma de agirmos, de nos expressarmos, de andarmos, pormenores retirados das lembranças de algum nostálgico que nos conheceu...
- Não estou certo ? Você está tão calado... ( mas continuava falando sozinho, parecendo que a presença de mais alguém fosse apenas um detalhe, um pretexto para suas divagações existencialistas)
Não podia atinar o que o levava a navegar tão abstraído naquele tema inadequado para o momento, quando o que pretendíamos era apreciar o movimento feminino dos blocos que desfilavam pelas ruas próximas.
Não pretendia interrompê-lo, pois estava compenetrado em suas teorias sobre a vida humana, pós morte. Eu o ouvia atento, refrescando os lábios, com a cerveja espumante e gelada, convidativa naquele início de noite de verão, acompanhado de amendoins limpos e salgados, como tira gosto. Ocupava-me a mastigar e a ouvi-lo, pacientemente, pois não era um sujeito vulgar a discorrer sobre asneiras, antes, um leitor contumaz, bem informado, com assuntos embasados e interessantes. Aquele tema era profundo, não diria, contudo, oportuno para o momento, mas...
- Nada mais seremos que reles lembranças, ofuscadas, vagas, esmaecidas nas memórias de alguns...
Na tarefa de mastigar os grãos oleaginosos, percebi certa amargura, de leve tristeza naquelas entonações, parecia um falar distante, profético e também poético, dramatizados involuntariamente nas entonações da voz. Parecia que não me cederia apartes, envolto em suas elucubrações, aparentando falar para um público invisível aos meus olhos. Temia ser indelicado, embora não houvesse cerimônias entre nós, amigos de tantos anos, apenas que a narrativa, por séria, não merecia ser contrariada ou alterada em seu rumo... Ficava a devanear, enquanto o observava em suas digressões filosóficas e tristes.
- Ei, vai ficar falando de seu amigo falecido até quando ?
( amistosamente, Paulo, sacudia-me os ombros, tirando-me de minhas reminiscências)
- Estamos tomando a nossa cerveja, veja o que você está perdendo, olha o mulherio, meu caro !
Acácio tinha razão, seríamos imortalizados por instantes, nas lembranças dos amigos retardatários... sorvia uns goles, experimentando amarga nostalgia...
*TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONTOS ALÉM DA VIDA, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, MAIO 2011