TODA MÃE É UM SER ENCANTADOR E MISERÁVEL, PASSÍVEL DE MORTE I

PARTE I.

LIA NA OCASIÃO "UMA TEMPORADA NO INFERNO" DO RIMBAUD, quando o demoniozinho que o escreveu chegou-me sorrateiramente ao pé do ouvido e sibilou: "Tá na hora de partirmos, se quiseres escrever de verdade." O problema era ELA que mais mais uma vez achava que eu não conseguiria, que iria fraquejar, dobrar os joelhos. Tive que provar pra ELA que daquela vez não, que eu estava mesmo decidido, que havia endurecido muito em todos esses anos. Foi quebrando tudo pela frente, xingando-me de bêbado, vagabundo, veado, ingrato. Foi me jogando na cara aquilo tudo. Uma metralhadorazinha materna de raiva e rancor atirando para todos os lados. Eu ouvia calado metendo apressado minhas tralhas na bolsa, minhas roupas, meus livros, meus cds, meus manuscritos, TUDO TUDO que poderia caber ali dentro e que tinha certa importancia para mim. Estava decidido mesmo. Eram seis daquela tarde e eu fazia tudo aquilo com um leve resquício de álcool fugindo pelas grades dos poros, mas estava consciente do que fazia. Precisava estar, pois que se tratava do dia de minha tão almejada alforria daquele útero. Do útero que me aprisionara em toda essa caralhada de anos e que já não podia mais me suportar. Já té podia sentir minha cabeça agonizante sair aos poucos de dentro daquele corpo materno numa espécie de cesariana macabra. Era só pegar a tesoura e cortar o cordão umbilical. Mas a tesoura era dela e o cordão, um empréstimo. Ainda sim, arrisquei dirigindo-me apressado rumo á porta da sala ganhando o portão de ferro. Nessa hora ELA soltou um grito de dor semelhante ao do porco quando o cutelo lhe atravessa o peito no dia de sua morte. Subi a ladeira sem olhar para trás. Evitava ouvir seus gritos do portão. Gritos lancinantes cortando a rua como um punhal amolado.

Deixei a casa com o coração pingando tristeza. Mas eu tinha que ser forte aquela altura. Uma muralha intransponível. ELA como parte do meu corpo morreria certamente. Chego a pensar que nessa correlação de forças antagônicas entre mãe e filho, é necessário uma parte morrer para a outra poder viver. Por isso, eu havia optado pelo suicídio, matando-a em dobro. Um suicídio que me levaria de encontro á vida. Eu ansiava viver. Tocar a aspereza da vida. Portanto, tive que matar minha mãe. Toda mãe é um ser encantador e miserável, passível de morte...

continua

Tambaqui
Enviado por Tambaqui em 02/03/2011
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