A grande aflição.
Bem, continuando falar sobre o ano de 1966, iniciei trabalho novo como havia referido anteriormente, na alfaiataria Mazzelli, estava feliz com meu serviço, porém, toda minha felicidade acabaria rapidamente, pois, meu irmão do meio, ao voltar do jogo de futebol, veio mancando, com a perna suspensa, minha mãe levou-o ao médico que engessou, disse que havia quebrado, voltou para casa com um enorme gesso, que ia dos pés até a coxa bem no alto, mas, os dias seguintes não foram bons, ele gritava de dor, chorava sem parar, até que começou a ter quadros de febre e minha mãe tornou levá-lo ao médico que passou medicamento para febre e mandou de volta para casa, porém, uma noite não conseguiu dormir de tanta dor, delirava até por causa da febre e começou a urinar sangue, minha mãe ficou apavorada com o quadro dele, e tornou levá-lo ao médico, só que desta vez, levou-o ao hospital das Clínicas, e lá o internaram, pois, não sabiam o que estava acontecendo, assim, começou a luta da mamãe, pobrezinha, ela se importava e muito conosco, apenas não conseguia ter tempo e era muito preocupada com tudo e principalmente em não faltar nada para nós, tipo, comida, um teto, pois, na época pagávamos aluguel, ela estava tentando economizar para comprar um terreno que havia visto e estava com um preço razoável, e afinal tinha aquele jeito fechado dela mesma, o de não sorrir nunca, falar pouco e estava sempre atracada com as costuras, mas, ela gostava muito da gente sim, do modo dela, as vezes nos castigava, pois achava que era a forma de saber aonde a gente estava e de não fazer mais arte, assim, nos punha de castigo, geralmente de joelhos, virado para um canto da parede, e assim ficávamos, até que ela mandasse sair, as vezes já a tardezinha, para tomar banho e esperar o jantar, e quando a arte era grande, aí ela usava os feijões e dizia que era pra gente tomar consciência do que havíamos feito e que não haveria uma outra arte daquelas!?... Mas, ela procurava fazer, com que fossemos unidos e que um ajudasse o outro sempre, assim, quando meu irmão do meio adoeceu, a casa ficou uma tristeza só, todo o santo dia, ela cruzava a cidade para ir visitá-lo no hospital, ficou 83 dias internados e desses 83 dias ela foi em todos, não queria de forma alguma ter que enterrar um filho, isso pra ela ia ser demais, as vezes contava sobre sua infância triste em Lavras, Minas Gerais e de como vira os seus irmãos irem morrendo e inclusive uma sobrinha com apenas sete anos de idade, falava das dificuldades e de como não foram fáceis aqueles dias, as vezes penso que ela era assim por causa de tudo que passara, e ainda passava, com meu pai, as dificuldades em São Paulo, também eram grandes, e assim, papai ao vê-la se desgastando dia após dia, decidiu aceitar o convite para zelar um prédio comercial que acabara de ser construído no centro da cidade e assim ficaria mais perto para ela ir ao hospital das Clínicas, e dessa forma a gente mudou do bairro, para o centro da cidade, e, já há alguns meses, deixei o trabalho de datilógrafa, pois, não tinha ninguém para ficar com meu irmão caçula, assim, pedi a conta para ajudar em casa, enquanto mamãe tinha que dar atenção para o meu irmão do meio. Ficamos sabendo que ele teve, uma infecção generalizada, devido a batida no joelho, o trauma, e como estava fraco, anêmico e era muito magro, com a pancada, houve uma evolução e atingiu até o osso de ligamento da coxa que pútrido, originou a infecção que já estava espalhando para o corpo todo, assim, ficou 57 dias tentando debelar a febre e limpar o sangue dele, após isso, procederam uma cirurgia para extrair parte do osso que apodreceu e limpar a região e colocar uma platina para ligar novamente, para ele voltar a andar, foi um tratamento longo, e os médicos disseram que mais tarde ele teria que passar por outras cirurgias, pois, tinha então 13 anos estava em fase de crescimento senão ficaria manco para o resto da vida, porém, mamãe achou que ele já havia sofrido demais e não autorizou novos procedimentos cirurgicos, disse que ele ficaria bem e que dariam um jeito de ele usar um salto maior no sapato, o que igualaria ao outro e tudo ficaria bem, pobre mamãe, sofreu muito na ocasião da doença do meu irmão, aí a gente viu o quanto ela realmente nos amava, não sabia na verdade demonstrar isso, porém era o seu jeito, nos amava de verdade, hoje em dia eu sei que não devemos exigir demais das pessoas, pois elas só sabem dar o que receberam, e minha mãe viveu na época da 2a. guerra, e de uma forma ou de outra sofreu bastante na sua infância e mocidade, vendo os irmãos morrerem sem recurso algum e sem terem o sustento necessário, realmente deve ter sido difícil mesmo pra ela, ainda mais, na cidade que morava onde os recursos faltavam e as vezes até racionamento de comida tinham, sem trabalho e lidando com doenças terríveis e incuráveis, na doença do meu irmão, vi o quanto ela lutou e pediu a Deus para curá-lo!... Assim, após 87 dias de internação, ele teve alta, e, chegou em casa magrinho, magrinho, engessado as duas pernas, com um cano no meio para segurar e transportá-lo e o gesso ia até a altura do estomago dele, havia um buraco na barriga e um buraco maior nas nádegas para ele usar a "comadre", para as necessidades e outro buraco na parte da frente, ele também tinha que usar o "papagaio", esta foi a primeira vez que nossa família lidava com uma situação tão grave de enfermidade, lembro que a gente tinha as doenças infantis que toda criança tem, e operamos as amigdálas e nada mais, agora porém, era diferente, o caso foi mais grave e todos de uma forma ou de outra tinha que lidar o melhor possível com a situação, até para animá-lo e auxiliá-lo quando da retirada do gesso e que ele realmente não sofresse mais, devo dizer que admiro muito esse meu irmão do meio, por sua força de vontade, por seu entusiasmo pela vida, e por não ter deixado nada disso abatê-lo e levar a vida com a sua limitação numa boa e sem queixar de nada e ter tocado sua vida normalmente, isto é, trabalhou normalmente, casou-se, teve seus dois filhos, um casal na verdade, e são maravilhosos eles, este meu irmão, foi o braço forte da mamãe quando do AVCH sequelado de nosso irmão mais velho, ele e a sua família toda auxiliaram mamãe o tempo todo, os dois eram muito amigos, e assim ele cuidou de tudo quanto foi necessário, inclusive para o aposento do meu irmão, e para possíveis ajustes que pudessem melhorar a sua qualidade de vida, e o meu irmão caçula também, enfim fomos todos, nós três, nos reunimos todos para auxiliar mamãe quando do infortúnio desse meu irmão mais velho, bom, mas dele já falei em outra oportunidade, o que ainda devo dizer, é que após a melhora do meu irmão e a medida que as coisas voltavam mais a normalidade, foi que arranjei o emprego no consultório dentário e aí um pouco dessa história eu já contei; era o início da jovem guarda, e também vivenciava-se o período de repressão por causa do regime militar que comandava então o país, muitas e muitas vezes eu cruzava a Praça João Mendes, com a cavalaria fazendo barricada e os carros e caminhões do exército apostos na Pça. João Mendes e na Pça. da Sé, era ostensivo o patrulhar e assim me lembro que naquela época, nem mendigo a gente via na praça, hoje fico pensando: - Onde é que ficavam os mendigos então?!... Havia um clima austero pairando no ar, um semblante receoso em cada olhar, até sentia isso na presença dos doutores, o mais brincalhão era o Dr. Arthur, porém, a cada sirene mais alta ele corria à janela para olhar o que estava acontecendo, o consultório ficava no 12. andar do edifício Berenice, acho que as pessoas viviam um clima de insegurança e veladamente tristes, sei lá, é o que eu sentia, sem contar as vezes que surgiam passeatas e eram logo debeladas pela polícia, mas, em tudo isso, eu era jovem e estava mais plugada no Roberto Carlos, ele era sucesso total, (era o Rodrigo Faro da vez), lembro que descia a Rua Quintino Bocaiúva e lá ia ouvindo o Roberto Carlos, som bem alto que saia das casas que vendiam discos, assim era o dia todo, a gente passando e o Roberto cantando, ah que saudades, que tempos bons aqueles, associei ele também, aquele cantinho de São Paulo, até hoje, quando passo pela Rua Quintino Bocaiúva parece estar ouvindo ele a cantar, eu e meus irmãos, tínhamos um ano de diferença cada um, somente o caçula que veio após dez anos do mais velho, foi o que nasceu em 1960, junto com Brasília, assim, nós fomos da geração que curtiu a jovem guarda, a pleno vapor, íamos até o teatro Record a cada show que a jovem guarda fazia para aquecer os invernos, inclusive houve um ano que fomos, e levamos nossa priminha de 6 anos de idade, e no meio da multidão ela soltou-se da nossa mão, perdeu-se, e foi chorando, parar no colo do Roberto Carlos, seu nome é Anay, e assim chegamos bem perto do rei, foi incrível isto, lembro que a gente nem queria mais lavar as mãos, ih ih ih... e, também a gente ia muito ao antigo canal 9 - tv excelsior, para assistir aos programas para jovens e os humorísticos, inclusive fomos ver a chegada do Jonnhy Rivers que se apresentaria ali, isso se não me engano, foi em 1969, meu irmão depois de ficar bem melhor, acompanhava a gente e também ele tinha uma voz bonita e cantava na Associação Antialcoólica que ficava na Rua Álvares de Carvalho, no centro, cantava divinamente, as músicas do Antônio Marcos e do Wanderley Cardoso, ele tinha até fã clube lá!... De fato, foram dias bons, apesar dos maus dias que outras pessoas passavam (isto quanto a situação política do país), nós participávamos de todos os eventos que os filhos dos ex-alcoólatras faziam, assim, tinha passeios como picnics, com gincanas, competição de canto e outras mais e nós estávamos levando uma vida melhor, isto é, no centro da cidade, no centro dos acontecimentos, e ainda vivendo a época mais gostosa que era a juventude, nessa ocasião fomos todos bastante felizes, papai havia melhorado muito, tinha amigos bons e a gente tinha uma vida tranquila e em paz, penso que foram um dos melhores tempos da minha recordação, e o mais tranquilo para a mamãe também, que até, já nem costurava mais, devido ter que dedicar-se mais ao meu irmão e a casa, assim, não pagávamos aluguel, e o dinheiro que papai ganhava dava para sustentar a casa, além do que, eu e meu irmão mais velho, já trabalhávamos também, foi ficando mais fácil a nossa vida, e eu reiniciei até os meus estudos, ah de fato estava tudo perfeito!...