Ao espelho

Quem me olha não suspeita que, por dentro, existe, para lá da camada flácida da pele, um moço bonito, simpático e honesto:Eu. Assim mesmo, com maiúsculas, arrogante e jovem, ignorante e ingénuo, tudo predicados que se grudam ao tipo que ainda guardo como recordação de outros tempos, talvez mais soltos e, indiscutivelmente, mais aprazíveis, menos dolorosos.

Vejo-me raras vezes depois das abluções matinais e nunca gosto de mim. O oval do rosto, a papada a descer mal disfarçada com o cavanhaque, a linha vincada na testa e mil pequenas rugas como sinal do tempo que passou, entristecem-me. Sinto-me saudável, é um facto, mas é tudo relativo. Estava melhor aos vinte ou até antes, muito antes, no que ao corpo respeita. Doente mesmo,amolecida, cansada ou até farta estava a alma, ou espírito, ou a mente ou lá o que se possa chamar ao que nos ocupa e não é físico. Ao tempo sentia-me desconfortável com o corpo que tinha. Nem músculos nem pelos suficientes, apenas um olhar aceso, a prolongar-me rumo ao sentido dos desejos, tantas vezes inconfessáveis, sujos, genuinamente perversos, predadores. A bem dizer poderia copular com tudo o que mexesse mas reservava-me para as pessoas certas que não existiam. Existir, existiam mas eram inacessíveis. Por isso me divertia como podia e podia com muita gente com os mesmos problemas, as mesmas necessidades.

O tempo, sempre morno, tornava tudo fastidioso, cansado e difícil. Era complicado gerir a revolta e o desequilíbrio das hormonas numa terra que tinha meia dúzia de espiões, outra meia dúzia de críticos a ter em conta e dezenas de indivíduos prontinhos a tirar-nos o couro ao primeiro deslize. Andava, então, pela franja da vida, à revelia da sociedade, no limbo onde, teoricamente, não se passa nada mas onde era tudo possível. Os beijos, festas, afagos, explorações mansas que, no escuro, simplesmente, não valiam. Aconteciam como escape, como motivação apaixonante, mas, na verdade, era como se fossem registadas a tinta transparente. Escreviam-se, usavam-se, gastava-se, vivia-se mas, para todos os efeitos, não valiam porque não poderiam ser reivindicadas ou assumidas. Ninguém viu, nem nós, os protagonistas, então, então…não tinha importância, não aconteceu, não existiu. Todos os demais sentidos entravam nesta dança inquietante em que o tacto, o paladar, o ouvido e o olfacto participavam numa impunidade sem limites. Nunca, ninguém, assumia nada embora fizéssemos de tudo, como gente grande, adulta, com direitos e capaz. Raiava o cinismo consensual e ninguém abordava temas que seriam desconfortáveis para todos. Havia outras atitudes estúpidas como ver quem urinava mais longe, quem conseguia masturbar-se e ejacular em menos tempo e outras façanhas idiotas que preenchiam os encontros depois das aulas.

Demorávamos se tacitamente nos convinha; fingíamos que éramos casualmente encontrados; saíamos “sem querer” para os caminhos de pouca luz ou para o acolhedor das sombras nocturnas de um jardim frondoso. No tempo propício, na hora certa, no momento conjugado. Nunca havia palavras. Os pedidos eram mudos, os gestos sabidos e os instintos, inteiros, actuavam em plenitude. Aprendiam-se coisas com os mais experientes, com os gabarolas, com alguns exibicionistas. A pele era uma fronteira do desejo e este comandava a vida. Foram anos de ouro, de renovada procura, de insaciada prática. O amor vestia-se de paixão, era terrivelmente ciumento e provocava amuos que ninguém percebia. Crescer é algo que continua muito para lá dos referidos vinte, como se cada decepção fosse necessária, como se a experiência doesse pela mudança, pela troca, pela muita ambivalência de que se tece um cadastro sexual na idade verde. O futuro era uma coisa que mal perturbava tão longe era sentido. A velhice ou até a maturidade responsável não se definiam como coisas inevitáveis ou próximas. Sou jovem, são, bonito, apetecível e vou ser assim quase para sempre, pensava. Posso tudo, até passar por cima dos sentimentos de terceiros, trair e mentir se daí resultar algo empolgante, diferente, diverso, valioso. Falava-se muito no amor mas esse tranquilo sentir não existia por falta de constância, de lealdade, de serena visão da vida a dois. E a aventura prosseguia, a vida exigia-o, a vitalidade e a permissibilidade, também. As pessoas que se mostravam inacessíveis ocasionavam verdadeiros cataclismos interiores. O som das vozes gerava afogueamentos perturbadores, o toque de um só dedo na pele dava origem a uma poderosa erecção que voltava sempre que pensava nisso, estivesse onde estivesse.

Muitas aventuras já tinham ocorrido quando comecei a usar a visão, isto é, a fazer tudo às claras, com luz, para regalo próprio e deleite dos olhos, juntando a vista ao resto para assumir as escolhas, a posição ou os gostos. Não importava a raça, sempre achei gente bonita em todos os tons de pele, em todas as variantes… Longe da família e com amigos, igualmente distantes, foi um fartar vilanagem pelos bairros escusos, pelas festas mal iluminadas, pelos roteiros da noite marginal. Chegava estoirado à cama e ainda havia sede no sangue, vontade no espírito, avidez na pele! Nem sempre o sono aquietava esta tensão mas era importante dormir.

Uns anos mais tarde, o amor. Como é bonito, intenso e exclusivista o amor! Como é avassalador quando, ao afecto definitivo, se juntam projectos e, as estes, compromissos duráveis. Casar ou não mas ficar a vida toda, a eternidade a olhar para ti, para a beleza dos teus olhos, para a lisura da tua pele, para a bondade do teu coração. Poemas e beijos, intimidades com sabor a paraíso e uma vontade firme de ficar ao pé de ti, amor, até ao fim dos tempos. A seguir o despertar da fome, da sede, do sentido prático e a constatação de que ruídos interferiam no amor e o tornavam banal, opaco, sem sentido. Doíam as rupturas mas a juventude permanecia embora menos obsessiva, mais serena e, também, mais lúcida.

Magoavam-me as lágrimas, as queixas, o desespero, mas fui sempre um barco que deveria partir. Cheguei e parti a vida toda à espera do cais ideal, do amor perfeito, do corpo que pudesse ser terra e pátria, estaca e paraíso, escudo e dossel. Naveguei até a noite cair sobre as minhas expectativas, sobre a maturidade e, se construi laços, não bastaram para me fixar a quem me queria com a mesma certeza e vontade. Com a mesma verdade. Tenho lugares de acolhimento, ganhei amizades fortes, ombros onde posso chorar mas o amor passou a ser menos atraente e mais tranquilo. Misturou-se com a amizade, com a ternura, com a vontade de fazer os outros felizes. Pelo sexo, pela compreensão, pela estima, pelo riso, ainda desbragado, de que também sou capaz.

Ainda tenho grandes noites, longos dias, tardes amenas e boas palestras à mesa do chá. Mas continuo a não gostar de me ver, agora encanecido, mais pausado, menos ágil. Não me conformo com a velocidade a que tudo se passou. Ainda ontem fui pela primeira vez, em prantos, à Escola e já hoje me sei sem necessidade de aprender. Salva-me a vontade de saber coisas outras, esta curiosidade, o gosto de ler os problemas de quem, na minha vida, te substituiu, amor. Mas, na verdade, não gosto de mim assim, com peso a mais, urso velho, lento, às vezes doce. Não gosto de poder separar logo as situações nem de sentir que me enganas por achar que sou menos esperto…

Tolero-me porque exijo liberdade, por ser bom não ter de me explicar, por ver a grandeza de Deus em ínfimos pormenores que hoje me enchem de brilho a vida. Posso viajar quilómetros para matar a sede a uma planta, para cuidar de uma ave solta, para abraçar um cão que se recuperou dos traumas da rua porque eu o acolhi e o amo. Continuo a não gostar de me ver nem em fotografia mas aceito que sou hoje mais completo e melhor. Só por isso me tolero.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 28/02/2011
Reeditado em 02/03/2011
Código do texto: T2821112
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