Rosa Espevitada

ROSA ESPEVITADA

Sentada junto à janela, podia ver uma nesga de campo verde, algumas árvores e, mais adiante, a porteira que se abria para a estrada poeirenta.

Pela porta do corredor que levava à cozinha, chegava um aroma gostoso de torresmos frigindo em gordura quente.

Parecendo concentrada no bordado que tinha nas mãos, de vez em quando a jovem dava uma olhadela furtiva para a folhinha pendurada na parede caiada de branco. E suspirava:

- Quinta-feira! Ainda faltam dois dias e meio!

Olhava de novo a porteira e a estrada comprida. Esperava pelo domingo...

Na rotina dos dias sempre iguais, estava bordando mais uma peça do seu enxoval. Como toda moça fina, Rosa crescera aprendendo - com a mãe e a mucama - as prendas domésticas, preparando-se para ser uma boa dona-de-casa.

Quando nascera, o pai – como todo pai que se prezava – comprara de um turco o lote de linho para o enxoval do casamento.

Um pouco por vez, aquelas peças de tecido iam se transformando em lençóis, toalhas de mesa, camisolas... tudo naturalmente bordado com capricho.

Sem monogramas, pois ela ainda não tinha sido prometida a ninguém.

Não tinha sido prometida, mas seu coração já tinha dono. Era por ele que Rosa suspirava, olhando a folhinha e a estrada comprida...

Por enquanto, era um segredo só dos dois. Ninguém mais sabia, e isso era excitante.

Só se viam na igreja, durante a missa de domingo. De longe, porque ela e a mãe ficavam nos bancos da direita, reservados às mulheres. Os homens ficavam do outro lado, ou em cima, na tribuna de madeira pintada de azul claro.

Aquele era o melhor lugar. Vicente se colocava estrategicamente num ponto de onde eles podiam se ver sem esforço, e sem dar na vista.

Tudo com muita naturalidade.

Um dia, ela disse à mãe que ia beber água e saiu da igreja. Vicente desceu rápido e os dois se encontraram. Só um átimo. Suficiente para um aperto de mãos e um sorriso de cumplicidade.

Alguns domingos depois, Rosa disse que ia se confessar. Vicente deslizou da tribuna e os dois se viram sozinhos, perto da cerca da casa paroquial. Um beijo apressado, mas forte, bastou para selar o amor. Ele ainda conseguiu murmurar:

- Seu pai nunca vai permitir que nós fiquemos juntos...

Segurando com graça a saia bordada, pronta a voltar para junto da mãe, a espevitada respondeu:

- Isso é comigo. Nós nascemos um para o outro.

Vicente não sabia se tinha o direito de se sentir feliz. Aquele beijo aquecera seu coração de esperanças, mas... ele era homem de pés no chão.

Rosa era uma flor de estufa, uma princesa de contos de fadas, filha única do coronel Fulgêncio, o fazendeiro mais rico das redondezas.

Ele, um pobre sapateiro remendão, sem eira nem beira, que morava com a velha mãe, ali mesmo, na praça da matriz.

Dois mundos diferentes, distantes demais!

No entanto, ele sabia de seus sentimentos e agora tinha certeza dos dela. Um para o outro... um para o outro...

Levantando mais uma vez os olhos do bordado, Rosa avistou o pai que chegava a cavalo. Entregando as rédeas ao capataz, ele subiu as escadas com passo firme de homem realizado na vida.

Ao sorriso da filha, respondeu com um alegre:

- Vá chamar sua mãe!

Cheiro de novidade no ar.

Rosa deixou o bordado sobre a cadeira e foi à cozinha. Pegou um torresmo quentinho e voltou curiosa, junto com a mãe.

O coronel estava refestelado na sua cadeira de balanço, preparando sem pressa o bom cigarro de palha. Entre misterioso e contente.

Dona Luzia chegou e sentou-se diante dele, sem fazer perguntas. Mas, o marido não se fez esperar:

- A que ponto está o enxoval de sua filha?

- Quase pronto, senhor meu marido.

- Muito bom! Acabo de me encontrar com meu amigo, o coronel Julião, e ficamos acertados. Prometi a mão de nossa filha para Gabriel, o filho dele. Tiramos a sorte grande, mulher! O rapaz é herdeiro de três fazendas de gado!

Rosa não conseguiu controlar um estremecimento e a agulha picou-lhe o dedo. Levou-o à boca, para estancar o sangue, sem coragem de levantar os olhos para os pais.

A cabeça girava e ela teve receio de desmaiar. Mas, respirou fundo e ouviu:

- Combinamos que o casamento será em abril, quando Rosa completar 18 anos.

Entre uma baforada e outra, o coronel olhava de esguelha para as duas, mudas diante dele. Por sorte, a mucama veio avisar que o almoço estava servido.

Nem os deliciosos torresmos crocantes foram capazes de devolver a Rosa o apetite de minutos antes. Conhecia o pai que tinha, e o que ele pensava a respeito de palavra empenhada. Engoliu como pôde algumas poucas garfadas e recusou a sobremesa.

No quarto, sem conseguir descansar, dizia a si mesma:

- Não posso enfrentar meu pai agora, mas vou descobrir um jeito. Ah! se vou!!!

A tarde de quinta-feira passou lenta; vagarosa passou a sexta, seguida de um sábado sem pressa... Por fim chegou o domingo, dia de Missa.

Devidamente vestidas com trajes domingueiros, os três montaram a cavalo e foram para o arraial.

Tudo normal como sempre. Quando Rosa disse à mãe que ia se confessar, Vicente saiu rápido ao encontro dela, perto da cerca. Em poucas palavras ela contou tudo, deixando-o desolado. Sabia que tinha de ser assim, mas agora todas as ilusões se desvaneciam. A moça sorriu docemente e lhe disse:

- Você sabe que eu tenho de obedecer a meu pai. Mas sabe também que é você que eu quero para meu marido. Meu coração é seu. Se você me ama de verdade, vá à igreja na hora do meu casamento.

- Como? Isto é pedir demais! Além de perder você, eu tenho de assistir ao seu casamento com outro?

- Não discuta. Faça o que estou pedindo. É um presente que eu quero.

- Mas, Rosa... além de tudo, eu não tenho roupa para ir a um casamento... Como posso entrar no meio de seus convidados?

- Se é por isso, está resolvido. Basta que você fique na porta, num lugar onde eu possa te ver.

E, quase chorosa...

- Preciso disso para ter força de obedecer a meu pai.

O sapateiro voltou desnorteado para a igreja. Nem viu o resto da Missa.

Passaram-se os três meses e chegou o dia do casamento.

Uma semana antes, a fazenda já estava cheia de convidados das propriedades vizinhas e até da cidade próxima. Copa, despensa e cozinha fervilhavam de mulheres atarefadas na preparação do banquete. Afinal, o coronel queria fazer bonito!

O noivo, que Rosa não conhecia ainda, tinha ido com os pais direto para o arraial.

Ela estava ansiosa, como toda noiva, mas não demonstrava constrangimento. Parecia mais dócil do que nunca à vontade do pai. Ia se casar. E pronto!

O sino da matriz tocou alegremente, anunciando a entrada da noiva. O padre, tio dela, estava a postos para receber os noivos. Nervoso, vermelho até a raiz dos cabelos, encabulado, Bernardo estava lá, esperando sua prometida.

Quando entrou, Rosa parecia uma flor, uma princesa, uma visão. E sorria descontraída.

À pergunta de praxe, Gabriel não teve dúvidas. Diante da beleza da noiva, nem gaguejou, e disse um sonoro Sim!

Quando o padre perguntou à noiva se era de livre vontade que recebia o sr. Gabriel por legítimo esposo, todos ouviram a resposta espevitada: Não!

Um sussurro de espanto percorreu a igreja. Desconcertado, o Padre repetiu a pergunta; e de novo todos ouviram um forte Não!

O coronel tentou uma reação, mas o padre fez um sinal ao irmão para que se contivesse. E num tom sério e categórico, perguntou mais uma vez:

- Senhorita Rosa, é de sua livre e espontânea vontade...

A resposta cortou a pergunta no ar:

- Não!

Aí foi a vez do tio:

- Menina, eu não estou brincando!

- Nem eu, retrucou ela, decidida.

- Então, o que você veio fazer aqui?

- Vim me casar, claro!

- Com quem, posso saber?

Virando-se rápida e faceira para a porta do lado, a espevitada disse:

- Com aquele sapateiro que está ali.

O pobre Vicente sentiu-se pregado ao chão. Queria fugir, mas as pernas estavam moles e não lhe obedeciam.

Dentro da igreja o murmúrio se tornava algazarra. Só Rosa continuava sorrindo.

Então, o padre disse ao sacristão:

- Traga aqui aquele infeliz!

Coronéis e senhoras foram se retirando, escandalizados e ofendidos. O pai da noiva saiu pisando duro, bufando de raiva e vergonha. Mas não podia desrespeitar a casa de Deus e a decisão do padre, mesmo que ele fosse seu irmão.

Quase arrastado, o sapateiro entrou pela porta do lado, vestindo as roupas remendadas com que estava trabalhando pouco antes. Na igreja, além do padre e do sacristão, ficaram apenas algumas pessoas curiosas que não podiam perder o fim da história. Com o testemunho delas, o padre tratou de realizar depressa aquela cerimônia inusitada.

Abençoou os dois e desejou que, apesar de toda aquela loucura, fossem felizes.

Rosa pegou com a outra mão o buquê de flores e a cauda do vestido de renda, e saiu da igreja, de braço dado com Vicente. E sozinhos atravessaram a praça de poeira vermelha, rumo à casinha simples do sapateiro.

A velha mãe continuava debruçada na janela, porque não queria perder a saída da noiva. Estava intrigada porque os convidados já tinham ido embora há muito tempo, não havia mais carruagens nem cavalos por ali, mas os noivos não apareciam.

Quando os dois chegaram mais perto, ela gritou apavorada:

- Meu filho, o que é isto?

- Estou casado, mãe! Esta é Rosa, minha mulher.

Alguns dias depois, com um bilhete da mãe, chegaram algumas malas à casa do sapateiro.

Era o enxoval bordado, que o rico herdeiro Gabriel nunca haveria de ver...

Laura Chilena
Enviado por Laura Chilena em 27/02/2011
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