A imagem refletida no espelho
E de repente chega a noite bordada de cansaço alojando-se no corpo que se deita para dormir pensando que naquele momento o dia acabou e agora é a sua vez de atuar num sono leve, gostoso, bom.
Fecha os olhos para imaginar as coisas que estão do outro lado da possibilidade de uma outra existência e o sono não é nada daquilo pensado antes. Não dorme, por mais que vire de um lado para o outro, boceje, pigarrei e execute exercício de respiração aprendidos na última sessão de yoga. O colchão não agrada, não agrada o cheiro do quarto e a garganta seca pede água, o estômago embrulhado grita socorro, assim como a cabeça revirada fica desarrumada, tudo fora do lugar.
A mão consegui atingir o interruptor, interrompe-se assim a escuridão do quarto e o sono que parecia ser leve tonara-se um pesadelo. Se levanta, calça as sandálias,desiste, tira a sandália, se senta, deita e volta a levantasse, calçar as sandálias e a andar pelo quarto freneticamente. Contorce as mãos, esfrega os olhos, cruza o braço esquerdo, põe a mão direita no queixo, passa pelo espelho, para compulsivamente, em choque. Fecha os olhos para logo em seguida abri-los e na confusão das imagens não acredita na miragem. Se vê refletida e para e olha e olha e para e se vê e no encontro dos seus olhos com os olhos da imagem que também a olha, se vê refletida, ali, dentro daquela moldura, emoldura-se e uma confusão de pensamentos tomam conta dos seres que são si mesma: vê a sua imagem que entra dentro de si.
Mas quem é você? - pergunta a imagem de si para si - Já parou tantas vezes para pensar? Pensa ou apenas pensa que pensa e assim vai levando? Dá para dizer agora ou ainda não há tempo para as respostas? A pergunta ecoa e se sente acoada, interrogada, perplexa. Percebe o dedo indicador da imagem do espelho estendido, hasteado em sua direção.
Na olhada do espelho, na imagem parada a sua frente se reconhece e se irrita e grita que não se sente representada daquela forma, naquele formato e também percebe que o reflexo faz o mesmo e tudo que sai de você também se faz eco dentro de si. Pega a escova e passa assim a pentear os longos cabelos por tempo indeterminado, mas não infinito porque o tique-taque do relógio provoca uma outra reação. Resolve, pois, se reinventar, pega maquiagem, pinta os lábios, os olhos, as maçãs do rosto ao mesmo tempo que a lágrima escorre, depois outras lágrimas e o rosto borrado provoca o riso.
Não responde a pergunta que se fazia há pouco, mas toma uma atitude. Passa então, não, não passa mais. Quem passa é a hora no relógio da parede, sobre a cama e a moldura: dois anjos tocando harpas, felizes, sorridentes, atenciosos a ação que estão desenvolvendo, desnudos como o gosta da infância que se apresenta agora e a hora que se ajoelhava para a oração do anjo, ali, no tapete posto ao lado da cama e as mãos macias da mãe protegendo as suas e a repetição acompanhada pelo som da música que saia de uma caixinha e naquele momento se sentiu indefesa, perdida, de volta e procura-se nos anjos, no relógio, nas horas, no tempo o tempo deixado para trás.
Vai a pia do banheiro, banha o rosto, passa sabão, enxuga na toalha branca estendida no suporte e não suporta a si. Apanha uma tesoura, corta o cabelo, joga as pontas no cesto, se joga na investida e toda tida para si só queria ser naquele instante ela mesma, construir uma identidade. Uma outra imagem é refletida no espelho do banheiro, um outro ser, um outro rosto e o olho cor de mel reluz e pisca para si suplicante: uma chance. uma vez para nós, ao menos um instante é o bastante. E nada basta, o goto amargo na boca descendo garganta a baixo, corroendo o esôfago e na digestão da ação presente senta-se na privada e se vê privada da vida. Não há razão, não há sentimento, não há si mesma.
No frio do espaço habitado é animal enjaulado, lados opostos, sentimentos antagônicos e um profundo vazio habitado por seres fantásticos. Se conhece? Sabe quem é? Não encontra forças para pensar e a ação ressona nos olhos grelados a observar a torneira que vaza em pingos concatenados. Cada gota do líquido cai em si como chumbo e a dor provocada dá ânsia.
Quer sair dali, quer deixar o espaço, mas se vê como o próprio espaço, estática, inerte, concreta.
De repente a inimiga entra em ação e vem descendo parede abaixo, vai subindo parede a cima, para baixo, para cima, de todos os lados e cantos. Você se recolhe; contorce o corpo, o contrai, traz para si a exaustão e ela atormenta sua vida na briga por espaço e habitat. Chega mais perto e vai alcançar seus pés.
O cheiro de rosa floral toma conta do espaço. Abre os olhos, tenta levantar, está com sede, quer beber água, comer alguma coisa. Sente um peso na barriga. Mas a boca não abre, algo parecido com lã pede que respire normalmente. Não entende, não compreende nada. E aquele vestido de vesta, apertado, como veio parar em seu corpo? Os pensamentos se confundem no momento que sente uma lágrima rolando do alto e sendo aparado pelo seu....
Naquele momento tentou gritar enquanto a imagem que via refletida no espelho sorria.
Postaram a tampa no caixão e a conduziram a morada eterna sem que pudesse dizer mais nada.