Vizinha da gaveta ao lado
Em um dia nublado, daqueles bem chatos, que não há vento para assistir as folhas das árvores balançando, nem chuva para molhar o vidro da janela e nem sol para os pássaros coreografarem. Eu estava a trabalhar. Ou melhor, fingindo trabalhar. A verdade é que estava caçando assunto para me ocupar, estava no mais absoluto tédio.
Já na décima vez que olhava na janela ao lado da minha mesa, já sem esperanças que algo tivesse mudado no último minuto desde minha última espiada, uma surpresa, um ponto escuro na esquadria. Olhei fixamente tentando lembrar se ele estava lá há instantes atrás, quando de repente, ele se move e confirma minha teoria: não era um ponto de sujeita, era um ser vivo.
Peguei meus óculos e vi que minha nova vizinha era uma aranha, nem muito grande, nem muito pequena, mas sem dúvida sua presença era notável com a parede branca e esquadria prateada que ela tão habilmente escalava. Meu dia estava ganho. Passei vários minutos observando-a, descobrindo seu jeito de movimentação, os caminhos, e depois de quase um dia descobri que ela mantinha residência fixa atrás do meu gaveteiro.
Nunca fui muito fã de aranhas, mas ela me pareceu tão simpática, e me pegou num momento que eu estava martirizada pelo tédio, que ficamos amigas. A única condição que impus ao nosso relacionamento, foi que ela não subisse na minha mesa, nem no meu computador e muito menos nos meus papeis, deixei-a avisada que se nosso acordo não fosse cumprido, ia fazer uso da minha indiscutivel vantagem natural.
Os dias foram se passando, a Gertrudes, minha nova vizinha, se mostrou bastante companheira, sempre ali, na parede ou no gaveteiro, respeitando rigorozamente o nosso trato. Como reconhecimento eu sorria para ela, falava algumas coisas, enquanto ela se movia tão graciosamente.
Até que um dia, uma cliente a conheceu. Horrorizada pela aparência de Gertrudes, gritou e esperniou até que o "inseto grotesco" fosse exterminado. Como que aquela gorda mal educada poderia falar mal da Gertrudes? Ela era tão simpatica, graciosa e obediente...
A cliente foi embora, visivelmente irritada pela minha simpatia pela aranha. Eu a segui até a porta falando que "o inseto" não iria interferir nas negociações, e que era a primeira vez que acontecia algo do tipo na loja, quase implorando para a moça voltar. Não deu certo.
Voltei à minha mesa, pensando em pedir desculpas para Gertrudes pelo modo que tinha sido tratada, quando vejo minha tão estimada vizinha de estimação ali, em cima da minha mesa, pela primeira vez. Ela estava de pirraça, visivelmente ofendida, mas não consegui esconder meu descontentamento.
Não a matei, mas a deportei, joguei ela pela janela no jardim do escritório para que achasse outro canto para morar. A confiança havia sido quebrada... como poderia mecher nos meus papeis em paz sabendo que ela poderia estar escondida ali tentando me pregar peças?
Admito, senti sua falta, e hoje encontro com ela - ou algum parente dela - passeando graciosamente no quintal. Mesmo sem a certeza que era minha Gertrudes, comprimento, como quem acena para aquele vizinho, que não conhecemos bem, mas sabemos que ele está ali, bem na gaveta ao lado.