Ih, mas isso é uma história um bocado espichada! Se sua impaciência de saber tá aí cutucando, vou contar. Pois que eu era menina ainda – num sabe? – de trança, vergonha, medo. Que nem qualquer outra menina que mais antigamente carregava essas coisas nos olhos e, nos ombros, um bornal cheiinho de saber nada. Lembro de minha mãe reclamando com meu pai que já estava na hora de fazer a comunhão. Isso porque o padre não largava ninguém se esquecer dos maus feitos da tentação, que cada dia chegava mais perto de nós. Isso, dito por ele. Eu não atinava bem o que podia ser tão ruim, mas se ele falava, não devera de ser mentira. Eu desassossegava nas noites de missa por conta da tentação que o vigário lá pregava na ponta da nossa língua pra num esquecer, num sabe? Às vezes fazia tanta força para fechar os olhos que meu corpo até tremia. Para não ver as taizinhas. E rezava o Pai Nosso, virada de medo do raciocínio perverso que tinha chifre e rabo. Parecia que quanto mais a gente requeria para esquecer, o coisa ruim mais obstinava em comparecer. E foi por conta disso que fui fazer os estudos para a comunhão.

E então foi que eu conheci o padre Luiz, que me deu esse retrato do Menino Jesus. Se esse Menino aqui tivesse vida, já tinha se formado homem e morrido na cruz, né mesmo? Mas Ele continuou Menino, enquanto eu crescia com as tentações tudo por perto. Virei mulher, pari filho morto, enviuvei e Ele não cresceu. Apeguei demais da conta a Esse Menino. E fico olhando pros olhos Dele, quando a luz do mundo me cega, num sabe? E eu sinto que a vida num tem tempo não. Sinto ela latejar no meu sangue que nem semente debaixo da terra adiante da quentura do dia e do frescor da noite, pulsando pra arrebentar as cascas velhas. E a força da natureza que eu carrego explode, num sabe, mas sem sair um tiquinho do lugar. Fico cheia, pacificada, sem fome nem visão de nadinha desse mundo. Fico fantasiando um cume de montanha e na lonjura dela, e eu deitada sobre o silêncio de um céu de paz a acalentar meu coração de gente. Olha essa menina, mas nada paga e nem compra esse lugar de onde eu quase num saio.

Já teve gente que estranhou esse modo meu. Estranha, ainda. Tira da cabeça oca que isso é um retrato e que Deus não tem feição. Que Deus num é papel. E eu digo que Deus é Tudo. E mais que eu olho assim nos verdes dos pastos, no vento balangando as folhas das bananeiras do quintal, na carambola em flor... Eita! Mais que eu vejo o Menino a correr por aí, despejando doçura e chamando vem! E eu que vivo nesse canto do mundo que nem um caco de vidro inumado num campo baldio, mas é que eu vou! E corro é pros braços Dele! Ele é Menino, mas eu que sou filha, num sabe? Ele é Menino, mas Ele é que sabe. Eu num pergunto nadinha! Ele é Menino, mas é Ele que é dono. Eu tenho é nada, muito mal esses pés que vivem no chão. E se quer saber, também nem ligo para o que falam não. Emudeço, mas fico rindo com Ele, lá por dentro.

Teve um dia que disseram que era falta de respeito ter intimidade com Deus. E nesse dia eu fiquei foi matutando na minha cabeça. Mas aquilo foi pior que uma tocaia, num sabe? Pior que um talho no pé, que um golpe bem dado pra botar alguém no chão. E eu fui mesmo pro chão. Levei foi com um moirão na cabeça. Fiquei velha de repente, pesada, de pecado até a alma. Doente. Fiquei doente só de pensar em magoar meu Menino, que é a última coisa que eu havera de querer nesse mundo. De repente senti aquela rachadura na vida, num sabe? E era verdade. Quem era eu? Me aferrei numa tristeza que só. Eu, caco de vidro, machuquei foi Deus. Misericórdia! Um medo me garroteou e eu mais parecia era um boi indo pro abatedouro. Perdi foi a conhecimento de minha força, num sabe? Pois é, pois que minha força morava era no Menino. Naquele ali, que eu conheci quando fui fazer a comunhão. Mas a rachadura era grande demais: Ele no céu e eu aqui na terra. Quer dizer que tinha era um sertão de pedra, inteiro, de separação. Eu entendia, mas doía era demais!

Foi que um dia, cansada de sangramento, eu pedi perdão. Olhei bem nos olhinhos dele, bem lá no fundo e pedi. Disse que eu estava era gente demais, num sabe? E eu carecia mesmo era de me desfazer e ser qualquer coisa que fosse mais leve para ficar mais perto. Mais é que eu gostava demais de saber que Ele estava ali comigo e eu com Ele. Fui é pensando, matutando e eu que num sou pessoa letrada, comecei a atinar que algumas pessoas embaralhavam era as palavras. Falavam coisas que fazia era a gente espantar Deus de mais perto, num sabe? Olha, que mais uma vez o Menino me fez enxergar pra mais longe da capoeira.

Depois desse dia, eu falo pra você: eu é que nunca mais vou largar Dele. Ele me entende e lê minha inocência, minha dor... Ele sabe que sou gente. E vou dizer, o amor de Deus tem a delicadeza de um canarinho da terra, pra num machucar os filhos, num sabe? Mas tem a sabedoria da coruja, que enxerga o espírito da noite. Isso, eu digo aqui, né? que é pra poder trançar uma ideia. Mas é que nunquinha que eu largo desse Menino! Bobo, é quem não acredita!
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 23/02/2011
Reeditado em 05/06/2011
Código do texto: T2810227
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.