Despertar
Acordo com um nó peito, um tristeza terrível assola meu despertar, muito antes de alvorada; luto com os lençóis, contra a falta de sono, é uma luta vã. Colocos os pés no chão, sentado, semi-nu, escancaro as cortinas, penso no que irei fazer, como se já não o soubesse. Enfio-me embaixo do chuveiro, a água quente escorre, me acariciando, faço de conta de que ela carrega, consigo, toda a impureza e o lixo que carrego comigo, em meu corpo, meu pensar. Abandono o banheiro, e com passos trôpegos, cambaleio vagarosamente até meu carro, tomo cuidado de não acordar ninguém. A porta se abre, a chave, ainda na ignição. É difícil dirigir, na verdade, chega a ser difícil respirar, mas consigo manobrar o veículo até o posto mais próximo, desço do carro e percebo que a manhã é fria. Apanho três garrafas no refrigerador, as deponho no balcão e entrego meu cartão à moça que me atende. Sorrio meu maior sorriso, dou-lhe bom dia, pergunto-lhe da vida, ajo como se comprar quase três litros de cerveja logo após despertar, fosse a coisa mais corriqueira do mundo. Ela entende, e finje junto comigo, ela me conhece, talvez me compreenda, de qualquer modo, me devolve o cartão, a sacola, e um sorriso carregado de falsidade.
Encosto o carro numa praça, há muito meu refugio, sento num degrau de pedra, as garrafas na sacola tintilam. Imagino como vai ser ridículo quando levantar, com o traseiro molhado, está garoando. Olho para cima, as diminutas gotas d’água atingem meu rosto, escorrem por ele, como gélidas lágrimas. Abro a primeira garrafa, a encaro por longos segundos, ponderando sobre beber ou não, segundos desperdiçados, dou o primeiro gole. Meu estômago se revolta, uma pontada de dor aguda surge nele, se espalha pelo meu interior, ânsia se manifesta, cerro os dentes até ouvi-los ranger, quase cravo as unhas em minha perna. Respiro fundo, a dor não diminuí, suporto o desconforto, rio debiamente dele, e eventualmente, ele se vai. O segundo gole é maior, a agonia menor. Então penso, se de gole em gole, melhoro, não sei como podem dizer que aquilo me faz mal. Outros tantos goles, outros tantos minutos, retorno de um vazio de pensamento, e retorna à minha mente, a última mulher de quem gostei, gosto, é complicado. A face dela se materializa a dois palmos da minha, suspiro apaixonado, tento acariciar aqueles lindos cabelos. Ela evapora no ar gelado, em seguida, lembro de outras de quem realmente me afeiçoei, de tantas com quem estive, amei tão poucas, e com estas, tudo deu errado, creio que há algo incrivelmente errado comigo. Largo ao vento a ideia, e volto à cerveja.
Na metade da segunda, sinto a confortável falta de sensibilidade, tanto física quanto mental. A música que toca no rádio é triste, apática, tudo parece estar onde deveria. Ouço, sobre o som da melodia, um portão ser aberto, e um casal, por ele sair. Ambos carregam muitos anos, o homem me vê, e lança um caloroso cumprimento, que prontamente retribuo. O velho manca dolorosamente, a cada quatro ou cindo passos, para e esfrega a perna dolorida, a velha, sorri, e tem um olhar débil, como se privada de suas faculdades mentais, acho que pode ter acontecido. É fácil sentir o pesar deles, duas vidas penosas andando lado a lado; então me surpreendo, eles se encaram, dão-se as mãos, e trocam um beijo, o mais belo e sincero que jamais foi trocado, tenho certeza. Por minha vez, beijo o gargalo da garrafa, amante que corrói. Por um instante invejo os dois, maldigo minha vida, tomo outro gole, engasgo, a dor voltou, me dobro sobre o abdômen que se encheu de chamas, e novamente, ignoro tudo.
Solto o ar dos pulmões, vejo ele se condensar em contato com o ambiente frio, acompanho a nuvem que se forma, me desligo. Uma mulher caminha pela rua, é gorda, obesa, e parece vestir um lençól florido, cola seus olhos redondos em mim. Petulantemente, me indaga se não tenho vergonha de beber a esta hora, com um sorriso, a mando à merda, atenho-me à cerveja, ignorando a avalanche de imprecauções que ela me atira. De acordo com a voz no rádio, são nove e quarenta, abro a terceira garrafa. O mesmo vento, que há pouco carregou certo pensamento meu, carrega as nuvens que pingavam em mim, malditas goteiras no firmamento, a garoa cessa, o frio não. Um raio de sol cruza a luz dos faróis, que esqueci acesos, me perco naquele feixe. Penso que pode ser um sinal, um indicador da beleza que pode exisir, da felicidade que é possível; penso melhor, é idiotice, é meramente luz refratada em água, e se existe felicidade, duvido que seja para mim.
A terceira se vai, como as duas primeiras, e muitas antes, meu estômago vira do avesso, dor lancinante, órgão inconveniente, simplesmente deixo de lado sua existência. Levanto, encaro as garrafas vazia descansando na grama úmida, vejo nelas meu futuro, meu passado, e talvez um fim. Com um pé descalço piso numa poça que me escapou à visão turva, a água gelada o envolve, sinto um arrepio correr minha perna, o deixo lá por um tempo, acabo me desligando por precioso minuto; então me lembro, há mais o que fazer. Respiro fundo, meu corpo dói, solto o ar, não existe alívio algum, como tantos dizem que suspirar faz, realmente, tem coisas que não são de modo algum para mim. Entro no carro, seguro o volante com ambas as mãos, deixo o queixo cair ao peito, respiro fundo uma outra vez, sorrio de ainda tentar algo tão estúpido, levanto o rosto, me recosto exausto no banco, vejo a mulher obesa passando novamente, aceno, sorrio, um sorriso débil, imbecil, e dou a partida.