O DIA EM QUE A ‘GAIA’ SALVOU A MINHA VIDA
Estávamos no ano de 1946. Teria eu na época uns 18 anos. Isso mesmo, 18. Era branco, olhos azuis, esguio, cabeleira farta e loira, do tipo difícil de se encontrar no sertão de Pernambuco. Neste dia, mamãe me dera de presente uma camisa branca de botão e uma gravata destas bem fininhas, que já não se usam mais hoje. Em Limoeiro era dia de festa, dia de procissão. Pela primeira vez, Angelita seguraria meu braço. Nós dois caminharíamos e renderíamos juntos as orações ao nosso Senhor.
Depois de caprichosamente fixar à luz do candeeiro, diante do espelho, o broche da minha gravata preta fininha, desci ao encontro de Angelita. Moça magra, seios fartos, ar inocente, 19 anos. Sim, 19. Era a moça mais cobiçada da cidade, dessas mulheres que ao passar fazem os homens retorcerem o pescoço.
Depois de dez minutos de caminhada, cheguei à casa de Angelita. Sua mãe abriu-me a porta e disse: “Já se foi.” Fiquei sem entender. Resolvi ir procurá-la. A luz era pouca, ainda não havia energia elétrica em todas as casas. A cada passo, podia ouvir melhor e mais alto as beatas com suas ladainhas e sentir na pele mais forte o calor provocado por tantas velas juntas. Ao avistar a multidão, lá estava ela. Angelita. Agarrada ao braço de outro rapaz, recebendo as bençãos, que seriam minhas. Quando vi aquela cena, o sangue fugiu-me, senti minhas entranhas gelarem, como se estivessem banhadas na frieza que Angelita teve ao me trair. Depois do choque, resolvi ir até o bar beber alguma coisa.
Acendi um cigarro, bebi uma cachaça… Meia-hora depois de sentir o gosto amargo de sofrer minha primeira traição, ouvi um estrondo, logo em seguida,gritos; iniciou-se uma correria, e em poucos segundos um grande tumulto tomou toda a cidade. Imediatamente a imagem de Angelita me veio à mente, senti o sangue me fugir de novo, procurei saber o que tinha acontecido e disseram: “ Um ônibus! Um ônibus atropelou os estavam na procissão!”. Não pude me conter e perguntei: “ E Angelita?!” responderam: “ Morreu. Ela e o rapaz que a acompanhava.”
Passar pelo local onde tudo aconteceu era obrigatório para que eu pudesse voltar pra casa. Pensava que seria melhor guardar a lembrança dela viva – ainda que fosse uma traidora, era por ela que estava decidido a fazer tudo, a dar-lhe tudo o que quisesse, se ela ficasse ao meu lado. Respirei fundo e caminhei até o centro de tudo. Pelo chão, vários corpos espalhados. Disseram que tinha sido um tal de Zé Viúvo que havia contratado o motorista do ônibus e mandado atropelar os romeiros (mas até hoje ninguém conseguiu provar nada). Não demorou muito e pronto: lá estavam os dois, um ao lado do outro estirados no chão. Ele, com um chapéu e uma vela ainda acesa em uma das mãos e, na outra, apenas o vazio deixado pela mão de Angelita, depois da pancada. Ela, repousando quase imaculada ao lado dele, com as pernas cruzadas – como se mesmo depois de morta quisesse preservas as decências que não teve enquanto viva. Com as mãos trêmulas, fiz o sinal da cruz e segui o meu caminho. Mais adiante, passei em frente à casa de Angelita, onde só se ouviam gritos, lamentos e uivos de dor. Angelita tinha 19 anos… 19 anos e já finada.
Ao chegar em casa, contei a mamãe o que tinha acontecido. Ela, com a serenidade e a coragem típica das mulheres do sertão, disse-me: “ Eu já sabia. Angelita não era flor que se cheirasse. Mas agradece, filho. Se não fosse a safadeza dela tu terias morrido também. A ‘gaia’ que Angelita te botou, salvou-te a vida.”
Foi o último ano da festa na cidade.
Mas Angelita ainda vive.