Clarice,(interrogação de si mesma)
Com certeza, sair à noite para vadiar e pensar era uma experiência nova para Clarice. Logo a menina tão pacata e tímida. Nunca vou entender o que aconteceu de tão ruim para que ela optasse por esse caminho. Mas vamos torcer. Se Deus quiser, não vai passar de um pequeno desvio de conduta, mesmo.
Era uma quarta- feira chuvosa e pra variar, o carro estava com problemas. “Bom, se vou mesmo 'experimentar' coisas novas, devo fazê-las de qualquer maneira”, pensou a menina um tanto assustada. O trabalho tinha sido longo e cansativo. Apesar de adorar escrever, não suportava ter que produzir artigos que tinham seus leitores contados a dedo. Desconfio que no fundo, Clarice sabia o quanto era preciosa e que merecia muito mais. “ Talvez se eu mudar um pouco de vida, fico mais corajosa e vou atrás do que realmente é meu.”, dizia isso todas as manhãs . Até então, não passava de uma tentativa frustrada de conseguir um pouco de ânimo. Quem sabe agora a idéia não ia pra frente.
Enquanto se dirigia ao ponto de ônibus, começou a pensar nas possíveis aventuras que a esperavam. Clarice sempre foi tão ingênua. Pensar que a vida depois das dez horas da noite é uma coisa maravilhosa. De fato, é um outro mundo. Mas maravilhoso, duvido muito. Vamos voltar à menina, por favor. Andava segurando um guarda-chuva quase quebrado que comprara em uma loja apertada e com um vendedor bastante criativo. Não lembro exatamente o quanto custou, mas pela utilidade do objeto, antes tivesse saído de graça. Bom, enquanto caminhava desviando dos pingos de chuva, o último ônibus estava passando para o azar da menina. Ao perceber a falta tamanha de sorte, decidiu que para começar “bem”, caminhar não era uma má idéia. Sim, se não pensarmos nos perigos das ruas, não é uma má idéia. Acontece que Clarice só sabia o caminho de casa e mal. Pra ver o quanto sua vida era desprovida de emoções. Falando em emoções, Clarice era bastante emotiva e sofria por não ter amigos. Além de suas palavras, os amigos que encontrava eram passageiros e quase nunca se lembravam dela. Eu acho que vou lembrar pra sempre. Começo a imaginar que eu e Clarice temos uma simbiose perigosa, do tipo que não consigo falar dela sem me meter. Acho que esse bicho estranho me pegou de jeito. Acho que eu e Clarice somos um só. Um escritor inteligentemente atormentado e uma menina nem feia e nem bonita, talentosa e insegura. Prometo que vou tentar não me meter muito na história dela. ( Será que consigo?).
O guarda-chuva mal conseguia se manter firme como escudo para a pequena. O jeito era fechá-lo e se molhar. Chegou a um ponto que não se importava mais. “Foi uma péssima idéia , vou para casa e ficar com o meu tédio". Não é de se admirar que ela tenha desistido logo. Se um dia Clarice concluir ao menos um pensamento, já será um avanço e tanto, como ver um macaco usando ferramentas pela primeira vez.
Voltou para casa e não tirou a roupa molhada. Já não se importava mais. Queria mesmo adoecer e ficar alguns dias longe da rotina e tristeza que era trabalhar no jornal. Trancou-se no quarto e desapareceu.