O Vendedor de Picolés
Em 1977/78 eu, oriundo do nortão de Goiás, morava em Goiânia, no bairro Jardim América, meu último endereço naquela cidade depois de ter passado pelo Setor dos Funcionários, Campinas e mais um endereço no mesmo Jardim América. Naquele tempo, nesse bairro, as ruas eram quase todas de terra, uma terra vermelha que encardia as roupas quando eu jogava bola num campinho que havia bem próximo à nossa casa.
Como ainda quase não tinha amigos ali, dada a tão recente chegada ao bairro, eu ficava por muito tempo brincando no quintal de casa com o Tom, meu irmão, e nossa brincadeira predileta era de ser cientista, talvez influenciados pelas peripécias da turma do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde vez por outra apareciam umas pipetas com líquidos borbulhantes (hoje sei que é gelo seco com água). Tivemos sorte de nunca ter mandado nada pelos ares, pois, misturávamos “potaça” com solução de bateria, pólvora, azeite de mamona, sal, vinagre, massa preta de pilhas ou qualquer substância que imaginávamos ser perigosa. Tudo no intuito de ver sair aquela fumacinha de laboratório. Em vão, nunca conseguimos. Só que isso começou a me deixar entediado, não sei se pelo fato de não ver sair a fumacinha ou de nunca ter mandado nada pelos ares.
E foi por causa do tédio, e aproveitando que meu pai estava viajando pra Araguacema e estávamos sós em casa eu e os outros irmãos e irmãs, foi que tive a idéia de dar uma forcinha nas despesas de casa. Resolvi entrar para o mundo dos negócios. Dentre as poucas possibilidades que a mim se apresentavam escolhi a área de vendas e saí a campo em busca da minha primeira oportunidade. Eis que esta surgiu em uma sorveteria que ficava a algumas quadras lá de casa. Apresentei-me ao dono – que tinha cara de poucos amigos - e conversamos um pouco onde o convenci a entregar um carrinho de picolés pra eu vender no dia seguinte, pois naquele dia não seria possível dada a necessidade de deixar a certidão de nascimento como garantia. Eu até tentei deixar minha carteira de identidade que eu já tinha, mas não foi aceita. Ninguém acreditava que um menino de pouco mais 11 anos já tivesse tal documento – só podia ser falsa. Não era.
No dia seguinte, logo cedo, lá estava eu firme para iniciar minha carreira no mundo dos negócios, o que aconteceu logo, após mais algumas instruções e uma notícia que me agradou de cara: eu tinha direito a degustar três picolés, na faixa! Saimos então, eu e o carinho, rumo ao Colégio Polivalente (o mesmo em que eu estudava e a diretora era irmã da profa Dalva) para arrebentar de vender, pois já se aproximava a hora do recreio e o calor estava de rachar. Pelo visto ia ser babinha. Três coisas que são garantia de bons negócios quando reunidas: Criança no recreio, calor e picolé. Ledo engano! Fiquei por lá um tempão e não vendi nada. Tocou o sinal para volta às salas e eu, apesar dos gritos enaltecendo a qualidade dos sabores (uva, milho verde, creme, morango, etc.) não vendi nenhum. Mas não desanimei. Saquei primeiro dos três picolés a que tinha direito e saí, saboreando-o, rumo a locais onde as pessoas tinham um potencial de compra maior. Segui para o Setor Marista.
Andei até quase estafar até chegar numa vila militar que tinha pelas imediações da av. 85. Todo o trajeto, do J. América até ali, foi parando, gritando (Ó o picolééé! Tem de frutas, coco queimado, de creme de todo sabor, aproveita que ta acabando e tá calor!). Não vendi nenhum! E olha que já era uma e meia da tarde.
Parei por ali por algum tempo, sempre dando uns gritos pra chamar a atenção dos transeuntes. Hum, em vão! Nada.
E lá se foi o meu segundo picolé. Passei-o pra dentro ali mesmo.
Após um descanso resolvi voltar fazendo outro caminho pra ver se tinha mais sorte. Segui gritando aquela ladainha que não servia pra nada quando decidi parar de gritar antes que ficasse rouco. Agora parece que a distância tinha aumentado e sorte não era minha companheira naquele dia, não pra vendas. Continuava sem vender nada e o calor estava de rachar naquelas ruas empoeiradas já que não estava mais no “chique” e asfaltado Marista.
Eu ainda estava longe da sorveteria e a angústia era grande. Como podia, o dia inteiro rodando, matei aula e não vendi nada! Desiludido com a área de vendas resolvi mudar de profissão e comecei a tentar acrobacias, ou seja, ia andando fazendo estripulias com o carrinho de picolé. Era curva daqui, salto do meio fio dali até o momento em que cheguei numa descida e, inadvertidamente, resolvi soltar as mãos. Isso mesmo. Soltei as mãos e deixei o carrinho seguir sozinho por alguns metros e segurei de novo. Ô beleza, deu certo! Não satisfeito fiz de novo e quando fui segurar o bicho, errei a mão e, eu, aperreado, vi o danado se afastar de mim, velozmente até capotar. Deu umas quatro cambalhotas espalhando picolé pra tudo quanto foi lado. Aí sim é que fiquei agoniado. Naquele barro vermelho parecia que era tudo picolé de buriti. Daí toca eu a pegar picolé, limpar na camisa e guardar no carrinho. Os últimos já estavam quase descongelados. Na verdade o último eu degustei, afinal, ainda tinha direito a mais um. Fiz isso logo, antes que decidissem que eu não tinha direito a mais nada.
Não preciso dizer que o Senhor Poucos Amigos ficou bonzinho comigo quando me viu chegar com os picolés sujos, quase derretidos e sem um tostão pra contar a estória. Foi uma beleza! Ouvi impropérios dos mais diversos, calado e encolhido num canto. Ele devolveu gentilmente minha certidão de nascimento e me fez prometer que nunca mais voltaria (eu mesmo é que não queria, hum!). Mas antes me garantiu que ia cobrar a dívida do meu pai. Não o fez, graças a Deus.
Descobri duas coisas naquele dia: Como vendedor eu era péssimo e como empurrador de carrinho de picolé, pior ainda.
E o cara ainda reclamou porque eu degustei os meus três, é mole?