UMA MÃO AO DESTINO
Meu relógio marcava sete horas da manhã quando desliguei o motor do automóvel e subi a pirambeira da mesma rua de anos, tão cedo, já poluída pelo monóxido de carbono dos tantos desregulados escapamentos alheios.
A minha chegada é sempre muito igual, meio esbaforida pela nuvem dos monóxidos circulantes, entre conversas da rampa de acesso ao prédio, crianças brincando, pessoas brigando pela vez, que lá madrugam na esperança de prontamente resolverem seus tantos problemas.
Porém naquela manhã alguém parecia ser um novo visitante, quiçá um novo cliente da instituição.
Havia com certeza dormido ao relento, sob a luz da lua que se despedia do parco telhado em reforma, quem sabe abandonado pela mãe, a emitir alguns sons quase inaudíveis .
Nitidamente assustado, parecia lutar pela vida.
Quando me aproximei, ele me lançou seu olhos ariscos que me denunciavam a sua emergência, sua nítida aflição, a de alcançar o chão da velha calçada e buscar pela direção de casa.
Notei que ainda não tinha tempo de vida suficiente para exercitar a habilidade que herdara por genética, a agilidade de se defender do perigos de suas tantas vidas.
Parecia deveras faminto, muito frágil e desnutrido, fato facilmente identificável na sua franzina aparência opaca.
Passei por debaixo dele, sem sequer me lembrar das superstições que rondam a vida dos que não têm a fé maior, e por alguns instantes. permaneci ali, imóvel, assistindo os seus malabarismos para não escorregar no gradil de segurança do muro alto, cada vez mais desesperado pela fatalidade que lhe rondava.
Quando parecia conseguir, olhava para mim em direção ao chão, e me deixava aflita ao me fazer perceber que logo logo despencaria dali, sem ter chance de sequer desfrutar das demais vidas que lhe eram atribuídas por folclórico direito.
Foi quando , de súbito, o seu Sebastião, o guarda do patrimônio, subiu na grade do muro e agilmente lhe aconchegou na palma da mão, dando-lhe a gentil e tranquila oportunidade de dali descer e seguir seu auspicioso destino de gato.
Saiu dali miando fino, nos olhando docemente, um filhote francamente agradecido pela mão humanitária que lhe permitiria sobreviver por mais seis vidas.
E eu segui pela rampa finalmente a acreditar que para algumas vidas há certas mãos que fazem toda a diferença.
Nota:
Em homenagem ao senhor Sebastião.