A TELA FRIA

Cristina e Rebeca tinham se conhecido numa estação de águas, em Minas, por ocasião de um fim de semana prolongado. Logo houve entre as duas uma forte empatia e, quando os feriados acabaram, trocaram telefones e endereços eletrônicos. Embora os contatos, virtuais por causa da distância, não fossem extremamente frequentes, a amizade perdurava já por alguns anos. Sempre havia uma troca gentil de cumprimentos e conversas pelo MSN; os anexos mais belos, principalmente sobre Van Gogh, Beethoven e Chopin, jamais deixaram de ser repassados. Cada uma sabia do que a outra gostava.

Cristina tinha alguns amigos virtuais. Entre eles, Júlio, alguém que lhe inspirava afeto, com quem tinha forte afinidade. Ela procurava conhecer esses amigos sempre que possível, mas com Júlio isso ainda não havia ocorrido e não o conhecia pessoalmente.

Fazia algum tempo... que as duas não conversavam. Naquele dia, Cristina estava on-line conversando com o amigo, quando Rebeca chamou:

— Boa noite, Cris. Estou passando para lhe dizer um oi, mas não quero incomodá-la. Só quero dizer que o que você escreveu aí é lindíssimo. De quem?

— Estou conversando com um amigo, mas me dê um minuto e poderemos conversar.

— OK.

Elas sabiam que a conversa pelo MSN é mais lenta quando não se abrevia. Contudo, as duas evitavam usar abreviações. Evidentemente, foi bem mais de um minuto, que só vale enquanto simbólico.

— Oi, Rê, ainda está aí?

— Oi, estou. Tentando colocar umas tarefas em dia. E você como está?

— Bem! Eu também estava aqui, fazendo uma pesquisa.

— Observou o que escrevi sobre seu verso? É seu?

— Vi sim, obrigada! É meu.

— Achei lindíssimo. Tão Manuel Bandeira!

— Estava no meio de um assunto complicado e interessante,

estudando um texto, mas não é sobre isso que quero conversar.

—Sim!!! Sim!!!

— É sobre o meu amigo, o Júlio.

— O que tem ele?

— Bem, ele é um amigo virtual. Não consigo embora me esforce, acreditar em tudo que ele me diz. As histórias que ele conta...

— Sim?

— Ele é mineiro, mas mora no Paraná; costuma me paparicar, me põe lá em cima, compra as minhas brigas no site, me botou um apelido carinhoso. Ainda é jovem, mas nossas trocas são muito boas pela maturidade e amplitude do conhecimento dele.

— Ótimo!!! Não é todo mundo que tem essa sorte de encontrar alguém assim.

— E estava me contando uma história sobre a amiga dele chamada Márcia, uma grande amiga.

— Virtual? Não! Essa é real; ele diz que é real: amiga de verdade! Amizades virtuais e amizades reais são diferentes; eles são muito amigos! Creio que ele é muito só. Ficou viúvo há dois anos, mas tinha uma relação muito intensa com a mulher e está demorando a recuperar-se. Ainda é muito grande a falta que sente dela. Não consegue esquecê-la, nem interessar-se por outra pessoa. Ele é muito inibido e tímido.

— É uma pessoa muito sensível, um poeta, porém tem dificuldades para expressar-se em prosa, por escrito: quando me envia e-mails, eles são todos truncados e rimados, escritos em tautogramas, aliterações... Você sabe o que são... não é? No entanto, quando nos falamos ao telefone, ou pelo MSN a conversa é bem natural e damos boas risadas... Mas, não acredito em tudo que ele diz embora, às vezes, me sinta culpada. Bom, não é para menos, as estórias dele são trágicas, demais!

— Hoje ele me falou que a amiga está doente e entra e sai do estado de coma... Os dois tinham alguns projetos em que iam trabalhar juntos, mas não sei em quê. Sabe, não gosto de invadir, não fico fazendo perguntas. Só sei o que ele me conta, ou porque quer, ou porque precisa desabafar. Ele diz que confia em mim.

— A Márcia teve câncer, não sei de que tipo, mas sei que houve metástase; havia tumores no cérebro. Eu não entendo bem, mas sei que ela foi se tratar em Cuba e voltou boa: os tumores desapareceram. Diz que ela voltou muito fraca, mas estava bem, retomando as atividades aos poucos. Ela tem uma filha adolescente e um filho pequeno.

— Você sabe muita coisa, é quase uma confidente.

— Sim. É isso que sou! Então, na semana passada, ele me contou que estava muito triste, porque Márcia teve uma paralisia renal. Acharam que ela iria morrer, sabendo que a paralisação dos rins, em geral, é o começo do fim. Foi internada às pressas, uma situação complicada, porque foi transferida para São Paulo e ele ficou sem notícias.

— Pra onde?

— Pro Sírio Libanês.

— Ah... Muito bom!

— Sim. O quadro dela ficou instável: ela melhorava e piorava e, de repente, começou a ter dores de cabeça fortíssimas.

— Então os médicos a colocaram em coma induzido. Os amigos oravam para que ela melhorasse. Por ser uma pessoa muito boa e querida, várias pessoas oravam por ela.

— ???

— Logo depois, ela ficou muito mal e disseram que ela tinha tido morte cerebral.

— Que horror!

— Mas, enquanto a família era chamada para que os aparelhos fossem desligados ela voltou.

— Ninguém volta de morte cerebral!

— Eu sei! Mas a Márcia voltou! Segundo o meu amigo, completamente sem memória, um zumbi! Mas viva! Apenas a filha continuou a passar notícias. Ele diz que ela perdeu a memória, mas lembra dele, da sua voz.

— Depois de alguns dias, diz que ela quis telefonar para as pessoas conhecidas. A filha ligou para ele e os dois conversaram; ele começou a contar pra ela coisas que haviam feito em comum, numa tentativa de ativar a memória.

— É???

— Ele diz que ela lembra de algumas coisas, mas que isso só acontece com ele e com ninguém mais...

—E a família???

—Ele diz que não.

—Eu perguntei sobre o filhinho, porque o sentimento materno é muito forte.

— Sim.

— Ele disse que o filho é um grande refrigério para ela, uma grande alegria, mas não entendi se é por lembrar dele.

— Hoje, a filha dela, o único contato, foi atropelada. Teve ferimentos graves; fraturou o fêmur. Teve fraturas seríssimas! Pode?

— Nossa!!!

— Precisou de cirurgia para colocar pino e tudo mais. Agora, ela está bem, vai ficar boa.

— Você já tentou confirmar isso tudo? Porque... Quando a coisa é verdadeira... Pessoas existem mesmo... Endereços existem... Telefones existem... Médicos existem...

— Bem, ele é meu amigo de Net, não tenho outra referência a não ser o que ele diz. Tenho a impressão de que ele fala de fatos reais, mas faz uma fabulação ao redor deles. Isso é comum na Net? Nesse grau de exagero?

— É um terreno bem fértil, mas nunca topei com algo assim. É bem intrigante essa história.

— É. Não deixa de ser. Meu monitor está ruim. Se ele apagar, considere que me despedi. Amanhã meu PC vai passar o dia no técnico.

— Fazendo lipo...

Assim que as duas se despediram, Cristina foi procurar saber sobre a morte cerebral. A conversa com a amiga deixara dúvidas que, embora vagas, a incomodavam. Telefonou para um primo que ela sabia estar estudando neuroanatomia cerebral. Ninguém voltaria, mesmo. Era fato sem registro nos anais médicos. A explicação para o fato poderia ser um mal entendido. Uma má interpretação dos comentários dos profissionais, em função do envolvimento emocional. Isso costuma ocorrer. Poderia também ser o caso de a jovem estar num coma parcialmente induzido, no máximo grau três e, quando ele foi suavizado, ela retornou, porém sem memória. Entre o que ocorreu, a forma como a história lhe fora contada e os fatos reais parecia haver um deslocamento. Cristina sentia-se tentada a acreditar no amigo, mas no íntimo se reprovava por sua credulidade. Sem meios para avaliar a situação, chegou a supor que, talvez, ele fantasiasse a realidade. Se fosse esse o caso, ela imaginava saber o porquê, mas isso não interessava a mais ninguém. Contudo, ela pensava, pensava, e não chegava a nenhuma conclusão. Existe um mundo, onde de um lado alguém pode fazer de conta que é verdade e do outro, alguém pode acreditar, ou fazer de conta que acredita. Como Júlio dissera uma vez, “a tela fria será sempre a tela fria”.