Consciência Negra

Sempre ia para casa caminhando, gostava de caminhar. Exercita o corpo e a mente. Sua casa ficava a mais ou menos cinqüenta minutos – se caminhasse rápido – de onde o ônibus lhe deixava.

Saltou do ônibus, pôs a mochila às costas e foi andando preguiçosamente. Observou algumas pessoas na lanchonete do posto de gasolina: ”por que SUBWAY”? – pensou. Quase se pôs a imaginar o que pensavam pessoas que às vinte e duas horas e quarenta minutos de uma quinta feira lanchavam num lugar chamado “SUBWAY”. Não ficou muito tempo pensando nisso, estava bastante cansada. Gostaria mesmo era de não mais pensar!

Continuou andando, na cabeça um turbilhão, nada se encaixava! Já próxima à prefeitura passa em frente ao monumento à Zumbi dos Palmares, na Avenida Princesa Isabel, quando começou a pensar na sua vida. Filha de pai e mãe semi-analfabetos não tinha muitas chances de ser diferente deles. O bairro onde nasceu e mora até hoje, na periferia da cidade, também não oferece muitas oportunidades para seus habitantes. Tinha todos os condicionantes para ser mais uma: mais uma adolescente grávida aos dezesseis ou quinze anos, mais uma jovem viciada ou na melhor das hipóteses, uma dona de casa submissa a um outro jovem tão ignorante quanto ela e tendo como principal diversão as telenovelas com suas musas e seus galãs perfeitos. Poderia até não casar, não ser viciada, não ter filhos, poderia ser uma solteirona, ficar para titia, como dizem. Mas certamente não escaparia ao grande espectro que ronda todas as periferias deste grande país (que não é o comunismo!): o espectro da ignorância! Logo, se ela escapasse a todas as outras situações a que estava acondicionada, não escaparia a um: seria sem dúvida uma titia ignorante e “novelera”.

Observava aquele monumento que era um tributo ao grande líder negro Zumbi dos Palmares e pensava na sua condição de mulher negra, pobre, e moradora da periferia de uma cidade periférica, de um estado igualmente periférico e de um país situado na periferia do mundo. Esta consciência lhe apavorava. E quando pensava nisto agradecia por ter recebido aquele convite para uma reunião de jovens na igrejinha perto de sua casa, há uns dez anos atrás. E sentia um grande alivio! Sabia que a resolução do seu problema não sanava o problema do país, mas tinha plena consciência de que era menos uma nas estatísticas do analfabetismo, da violência. Era um exemplo e sabia que quando chegasse a hora certa daria a sua contribuição para ajudar a tirar outras meninas e meninos como ela daquelas estatísticas perversas.

Continuou andando sem muita vontade de chegar em casa. Na Praça do São Caetano ainda pode ver de perto as estatísticas. Um sentimento de vazio e desesperança lhe invadiu o pensamento. Quanta gente jogada ao desprezo, sem rumo, sem perspectiva, sem comida, desprovida de dignidade! Na Praça do São Caetano se aglomera todas as noites uma horda de viciados, desdentados, gente que já perdeu absolutamente tudo na vida.

Foi caminhando e ficando angustiada, será que realmente poderia dar a sua contribuição para mudar as “coisas”? A duvida abateu sobre ela, já que ninguém está preocupado com o que acontece na Praça do São Caetano, quem liga se o país tem mais de quarenta milhões de analfabetos, quem se importa se esses analfabetos são todos pobres ou miseráveis? Parece que só ela se importava.

Chagando em casa, sua mãe que assistia a uma novela lhe entregou uma correspondência: “chegou hoje”, disse estendendo o braço sem olhá-la. Pegou o envelope e foi para o quarto. Sentou-se na cadeira em frente ao computador e foi abrindo o envelope. Quando leu a carta sentiu uma felicidade explodir no peito: tinha sido aceita no mestrado, um de seus grandes sonhos. Começava a aumentar a sua responsabilidade e junto com ela a angustia.

Taciturno Calado
Enviado por Taciturno Calado em 12/02/2011
Reeditado em 13/02/2011
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