OS SUICIDAS
Foi há muito tempo atrás. Quando ainda morava em Porto Velho. Cara Dura, Ezequiel, Fininho, Zé Doido e eu: minha geração perdida dos oitenta. Vivíamos sem esperanças, duros e cheios de tédio. Muito álcool, bolinhas, gotanergan, tonopan, e optalidon. Havia também um tal de Benflogyn que a malandragem chamava de geléia: um tipo de remédio pra esquizofrênico e mulheres grávidas. Vinha em forma de drágeas ou xarope que misturado com cachaça dava mais lombra e deixava a gente doidão e moles como geléias. Depois vieram baratos mais pesados. O fato é que buscávamos a morte o tempo todo. Mas foi o Zé Doido que naquela noite girou a roleta. Uma única bala no tambor de seis buracos, como no filme do Franco Atirador que um dia vimos os cinco, chapadões, no Cine Lacerda, no centro sujo de Porto Velho. “Tem que ter colhão pra arriscar!” Zé Doido nos disse. Olhamos todos sérios pro trabuco sobre a mesa. Uma .45. Quando a mente enfraquece, a morte seduz. E a morte não costuma errar de porta, ainda mais quando se vive dando muita sopa. Naquela noite, cachaça Cocal e Gotanergan na veia que era pra dar mais coragem. Feito o sorteio, Cara Dura o primeiro. Em seguida Ezequiel, eu o terceiro, Zé Doido o quarto e por último o Fininho. Alguém ali ia se foder. Zé Doido botou a bala no tambor, girou a roleta e deu a arma ao Cara Dura. As mãos dele tremiam pra caralho. Mas ele disparou, na cara dura. Fez um clic-seco-surdo nos ouvidos dele. De todos nós.
III
“Uma porra! Tô fora!” Fininho arregou. Tinha só dezenove, muito novo, mas o excesso de picos na veia e cachaça Tatuzinho deixaram ele com aquela cara de velho. “Cagão do caralho!” Berrou Zé Doido. Foi expulso da roda e do grupo. O tambor girou novamente. Foi a vez de Ezequiel e novamente aquele clic-seco-surdo e um sorrisão nervoso naquela sua cara de finado. “Toma!, tua vez, Mário!” Peguei o trabuco, mas não tive forças de pressionar o gatilho até o fim. Era pesado e ele chegava até o meio e voltava. Uma, duas, três vezes tentei, na quarta, Zé Doido tomou-o de minha mão e tremendo, apontou para sua cabeça. Disparou. Nada. Só o silencio e aquele cheiro escroto de morte. Girou o tambor e sorrindo, devolveu a arma para mim. Era novembro. Não sei se chovia, mas isso não fazia diferença aquela altura. As estações dentro de nós eram sempre as mesmas: cheia e vazante se alternando. Peguei a arma decidido. Na hora não se pensa em nada, só uma vontade imensa de mandar tudo pra casa do caralho. Assim o fiz apertando bem os meus olhos e acionando o gatilho. Dessa vez, até o fim. Senti a bala atravessando minha cabeça. Tudo explodindo; tudo acabando. Mas para minha decepção ou alívio, o projétil teimava em permanecer ali dentro. Eu continuava vivo, como os demais. Zé Doido pegou da arma outra vez e apontando para o alto, disparou. Aquela bala que seria para o Fininho fez um rombo medonho no telhado de zinco. Ficamos ali olhando um tempão para o tamanho do buraco que a bala fizera no telhado.
IV
Não sei quanto aos outros, mas aquele rombo no telhado ajudou-me a ver o tamanho do buraco que eu havia cavado em meu peito; o quanto não tínhamos consciência da morte. Foi quando decidi parar de vez com aquela porralouquice toda.
Hoje, sentado aqui e escrevendo essas linhas no silencio do meu quarto, penso de verdade o quanto a vida é irônica. Depois daquela noite suicida, cada um de nós tomou um rumo diferente na vida: Ezequiel virou pastor de Igreja. Zé Doido e Cara Dura entraram pro tráfico. Fininho morreu atropelado na rodovia três-um-nove (um mês depois daquele episódio da roleta).
Quanto a mim, vim para Manaus e aqui descobri que a pena fazia algum sentido e decidi seguir vivendo. Girando agora uma outra roleta.