UMA VIAGEM - FINAL

As cidades ribeirinhas assemelham-se em muitas coisas; possuem o lugar comum da paz silenciosa própria das regiões florestais. Observam de longe a nossa chegada e nos recepcionam a seu modo. As aves que adejam ao redor dos galhos floridos das árvores, os sons indecifráveis dos animais vindos do interior da mata: o pica-pau construindo o seu ninho, a galhardia dos alegres macacos, representam o abraço de boas vindas ao recém chegado sem, no entanto, quebrar essa paz intrinsecamente imperturbável. Somados à quietude das primeiras horas matinais que nos viram chegar, trazidos por uma lancha de aluguel, estavam os meus anseios e, junto a eles, uma ponta de medo e angústia. Algumas mulheres, à beira d’água, lavavam peças de roupas que iam retirando de tinas arredondadas. Crianças seminuas corriam na terra úmida, no meio de porcos e marrecos que entravam e saíam pelo espaço aberto em uma longa cerca de troncos aramados. Além desta, o enorme quintal de uma propriedade rústica com horta, poço artesiano e duas pequenas casas de um lado e do outro. No fundo, um pomar e, atrás de tudo, a imensidão da floresta. A casa principal, no centro e em último plano, dominava a paisagem por causa do seu tamanho. Era, na verdade, a escola onde eu iria trabalhar. Construção simples, de dois andares, mas bem estruturada, mantida pela prefeitura local.

Já esperada, fui recebida na ampla varanda por uma senhora simpática de pele muito branca e cabelos cor de prata que, sorridente, estendeu-me a mão, apresentando-se como a diretora.

– Estávamos ansiosos por sua chegada; importa-se em começar amanhã mesmo os trabalhos?

– É claro que não, mas por que a urgência?

Sei como é penoso tocar um trabalho de educação deixado por outra pessoa e em local e condições totalmente desconhecidos. Ainda bem que teria pela frente toda uma noite de sono e, se possível, aquele dia também. Ela pareceu ler em minha fisionomia e na de Vítor que, ainda de mãos dadas comigo, não deixava de encará-la; sem perder o sorriso, falou:

– É por causa de um pequeno contratempo. Estamos em semana de provas e o serviço aumentou um pouco nestes dias; sem contar com o afastamento de uma das professoras.

– Está doente?

– Sim... Ou melhor... Não sabemos ao certo. É você quem a está substituindo, só que precisamos dela por mais algum tempo até colocarmos em dia o serviço; é questão de semanas. Ela não quer vir. Na verdade, já está aposentada há algum tempo. Alega problemas.

– Entendo.

– Quando se trata de direitos a coisa tende a ser a mesma em nosso país, não importa onde se trabalha. Nunca a soube reclamando sobre este aspecto; é a mesma desde que começou conosco há quase cinco anos, todos gostam de Jovelina.

A menção deste nome chamou-me a atenção e despertou minha curiosidade.

– A senhora disse que ela se chama Jovelina e está com vocês há quase cinco anos? – perguntei.

– Quatro anos e oito meses, para ser mais exata; lembro que veio para começar em agosto. Dá-me a impressão que a conhece, ou será que me engano?

– Sim... Quer dizer... Não a conheço. Mas, conheci alguém de sua relação. Quer dizer, de uma Jovelina, cujas informações coincidem com o que está me dizendo e que se encontra aqui em Borba.

– Então estamos falando da mesma pessoa, pode ter certeza. Borba é uma cidade muito pequena para este tipo de coincidência. Em todo caso, não quer conhecê-la? – está bem próxima de nós – disse, apontando para uma das casinhas em uma das laterais do terreno.

Era mesmo muito pequena, uma varandinha simples, mas que deixava transparecer um cuidado e preocupação pelas coisas da natureza. Algumas samambaias pendiam do alto em xaxins a se balançar em correntinhas prateadas. O murinho era ornado de pequenos vasos com flores e, no pequeno espaço do jardim que havia em frente, espécies rasteiras e multicores sobressaíam em meio à rica verdura do gramado e contornavam os arbustos e os pés de ervas. Sem esperar por minha resposta ela se adiantou, fazendo sinal para que eu a seguisse. Atravessamos o portãozinho de madeira e penetramos na varandinha.

– Espere um pouco, por favor, enquanto falo com ela. – Sentei-me em uma das cadeiras ao redor de uma mesinha de vime e aguardei. Antes, porém, que a diretora encostasse a mão na maçaneta da porta, esta foi aberta por dentro e uma mulher apareceu. Aparentava não ter mais do que sessenta anos, era de uma forte cor morena, estatura média e tinha um corpo robusto. Em poucos minutos de conversa, sentadas à mesa, obtive minhas primeiras impressões de Jovelina, a mesma que não saiu da lembrança do velho relojoeiro. Alegando compromissos, deixou-nos a sós a diretora e eu pude conhecer um pouco mais desta mulher. Sua simpatia cativou-me por completo. Outra característica que apreciei foi o seu poder de decisão. Parecia realmente saber o que queria da vida. Quanto ao trabalho na escola, estava terminado; agradeceu-me por substituí-la e prometeu-me passar o serviço. Passados trinta minutos de uma conversa bastante agradável decidi-me, por fim, relatar o encontro que tive com seu ex-companheiro. Uma total transformação operou-se em sua fisionomia que demonstrou uma seriedade desconcertante; ficou lívida, encarando-me algum tempo e sem dizer palavras. Tive que quebrar o longo silêncio.

– O senhor Anselmo me pareceu uma pessoa bastante solitária; confessou-me que a ama e está sofrendo.

Sua expressão agora se fechou, revelando ódio; um ódio incontido, guardado há anos; deixara este passado reprimido nalgum canto da alma e agora a simples menção despertara um sentimento reprimido.

– Espere, tenho algo para a senhora. Não me demoro.

Ao deixar a varanda, Vítor, que estivera no pátio, brincando com outras crianças, ao ver-me, correu em minha direção, mas estancou ao ver Jovelina. De olhinhos arregalados, a boca escancarada num enorme sorriso, encheu-me de surpresa e alegria quando gritou:

– Vovó!

E disparou novamente invadindo a varanda e atirando-se nos braços da mulher. Jovelina recebia, retribuindo os beijos da criança que parecia não se conter de felicidade.

– Minha vovó! Minha querida vovó! Quanta saudade.

Minha felicidade não era menor do que a deles ao ver a alegria da mulher e ouvir pela primeira vez a voz de Vítor. A fim de não interromper aquele momento afastei-me para buscar o que tinha para Jovelina, mas ao retornar, nova surpresa havia ocorrido: o menino falava com a avó e ela tentava de fato lhe responder, mas tudo o que conseguia era articular sem, no entanto, conseguir emitir o som. Perdera a voz. Duas emoções em seguida fizeram-na emudecer. A princípio hesitei em lhe entregar a carta e o presente. Porém, ao mesmo tempo pensei que poderia ajudá-la. Eram complicados os seus sentimentos. Fui em frente.

Ao tomar nas mãos o estojo contendo um lindo relógio e ver a caligrafia no sobrescrito do envelope, duas lágrimas rolaram sobre sua face envelhecida. O que faria de sua vida daquele dia em diante é um eterno mistério.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 10/02/2011
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