UMA VIAGEM - PARTE 2

Era comum encontra-lo todo fim de tarde por aquelas bandas. Sempre no mesmo local, à beira do cais, com as pernas dentro d’água, apreciando a calma do rio e o movimento suave das embarcações. A orla era repleta de lanchas para turistas, botes equipados para pesca e uma quantidade enorme de barcos de passageiros de dois ou três andares, alguns totalmente lotados, iniciando suas partidas. Quis conhecê-lo desta vez. Enquanto dele me aproximava ia imaginando o que estaria passando na cabeça deste menino cujos pensamentos pareciam ir bem longe, a quilômetros de distância. Portanto, ali estava ele. Entre nós, a estreita ruazinha e seu burburinho de todas as manhãs.

Na mesa do pequeno café tinha eu em mãos o jornal, mas não o lia, pois pensava em Vitor. Olhei a passagem e confirmei o horário: quase duas horas ainda separavam-me da minha partida. Via-se de tudo naquele pedacinho de rua que conduzia à pequena ponte de madeira que se ligava à estação portuária: mulheres sustentando enormes barrigas à beira do parto de um ou acolhendo ali dentro, no mínimo, gêmeos e, ainda, como se não bastasse, conduzindo pela mão e colo mais um punhado deles. Homens em cômicos chapéus de palha e ridículas calças brancas na altura de suas canelas, exibindo rostos vermelhos, castigados pelo sol de suas lavouras. Jovens casais enamorados, desfilando o pobre vestuário, o mau trato dos cabelos, dos dentes, em dissonância com a felicidade de estarem juntos; riam às gargalhadas, compartilhando o amor. À medida que se escoavam da manhã calorosa os minutos, crescia o movimento sobre a ponte. Balouçando à deriva, a espera de suas partidas, as generosas embarcações que a tudo e a todos acolhia: esteiras de dormir, redes pesadas e coloridas, rádios, cadeiras de praia, lanternas, fogareiros, secadores de cabelo, animais de estimação, ventiladores, bolas, televisores portáteis, torradeiras e o que se puder imaginar de necessário e útil a uma viagem de dias.

A rampa de descida reverbera ao som trepidante das pisadelas da massa que, aos poucos, vai lotando o saguão de espera. É, na verdade, um amplo compartimento, suficientemente arejado para acolher centenas de viajantes que ali se aglomeram. A cada vinte minutos um apito agudo e prolongado anuncia uma nova partida. O auto-falante dá a conhecer o destino da viagem e o local rapidamente se esvazia para dar lugar ao tropel seguinte e a mesma cena se repete. Seria assim durante toda a manhã e, com menor intensidade, no restante do dia. Também eu, por enquanto, espectadora atenta e curiosa, faria, dentro em pouco, parte daquele cenário, para mim, inusitado, mas tão presente na rotina daquela população.

– Não sabia que gostava de se levantar tão cedo. – Percebi, quando disse estas palavras, olhando por cima da cabeça de Vítor, que esboçara um sorriso antes de voltar para mim seu rosto jovem e bronzeado. Ato contínuo levantou-se, mas tão atabalhoadamente que salpicou as pernas da bermuda branca que eu usava; teria agora que permanecer um pouco mais por ali, à beira do rio, até que a brisa fria me viesse ao auxílio e me devolvesse a devida aparência. Falando em aparência, a de Vítor não era das melhores. Estava abatido de rosto e tinha olheiras. Calculei que estivesse faminto e não me enganei, pois, devorava agora a refeição matinal à minha frente no mesmo café. Confessou-me o que me partiu o coração.

– Por que na rua? Não é lugar para se dormir, muito menos para viver. Há quanto tempo se encontra nessa situação?

Levantou as duas mãozinhas, mostrando-me sete dedos, o que me deixou ainda mais triste. A alegria de conhecer Vítor, diante daquela situação tão infeliz, e do que fiquei sabendo em seguida, desvaneceu-se completamente. Eram seus pais duas das vítimas fatais do terrível naufrágio, ocorrido há alguns dias nas águas do Tocantins e que fiquei sabedora através da imprensa do Rio de Janeiro; foi tão grande o choque que lhe lavara a voz. Vagava agora nas ruas como um cão sem dono. Muito pouco sabia eu sobre sua família. Que era filho único eu sabia; que amava os pais mais do que tudo neste mundo tornou-se ainda mais evidente para mim após a constatação daquele seu estado em que a voz emudecida, as lágrimas rolando na face e o estado de abandono enterneciam-me vorazmente.

Na tentativa de amenizar uma dor tão profunda, desviei para cenários mais alegres o foco de nossa conversa. Era-me penoso, entretanto, disfarçar meu sentimento. Levaria para a minhas longas horas de viagem um espírito contagiado pelo choque daquelas constatações; precisava fazer alguma coisa. Após brincar um pouco e extrair alguns risos tão comuns a um menino de 12 anos, indaguei de seus parentes. Certamente teria tios, primos ou avós dispostos a acolhê-lo. Não é uma grande cidade; é impossível que sua história não tenha levantado comoção suficiente para impedir-se um descaminhamento e o desperdício de mais esta existência. Vítor era na verdade um desses pequeninos entregues ao descaso da sociedade. No seu caso, tornava-se a situação mais séria e revoltante, posto ter sido o produto de uma inexorável fatalidade.

Em pouco mais de trinta minutos com Vítor o que consegui captar e assimilar de seu limitado poder de comunicação deixou-me uma certeza: em nome de uma vida que viceja e clama por desenvolvimento, eu precisava fazer alguma coisa.

Segundo minhas conclusões, os parentes que lhe restaram ali naquela cidade não teriam a mínima condição de cuidar de sua criação. Era um casal de tios cuja vida encontrava-se abaixo da precariedade. Alcoólatras, com uma penca de filhos miseráveis, viram em Vítor nada além de uma boca a mais; afeto e cuidado estariam, portanto, descartados.

Três dias foram o suficiente para a percepção inteligente do menino prever o mais infeliz dos destinos e fugir com a roupa do corpo. Não falhara a sua intuição, pois que não foi procurado; quem sabe, um alívio para o casal e umas peças de roupa a mais para os outros, vítimas da imprudência.

A manhã avançava. A série de nimbos, que muito cedo predispunha um dia chuvoso, dissipou-se por completo, deixando muito claro o firmamento; o sol voltou a se abrir. Esta sensação de bem estar e de conforto, própria dos dias de verão, transparecente no brilho e na frescura das águas, na agitação dos pássaros e no verdor das folhas, predominava em quase todas as fisionomias que por nós desfilavam. As crianças iam presas pelas mãos dos seus responsáveis porque havia o risco de se perderem no meio da multidão, mas expressavam em saltinhos, gritos de alegria e outros gestos toda a felicidade do momento. Vítor parecia contagiar-se nesta onda de alegria. Deixou num instante para trás o desânimo e a tristeza como se algo houvesse tocado o seu espírito. Abriu um largo sorriso, apontando para a estação. No prato ainda restava um pedaço do bolo de chocolate que vinha comendo e a caneca de leite estava abaixo da metade. Eu tentava interpretar o gesto de Vítor, mas não vi nada nem ninguém que o corroborasse. Contudo, uma idéia surgiu em minha mente, o que poderia representar uma solução ideal para alguém nas condições dele e, para mim, talvez, uma aventura ou, mais do que isso, um gesto de amor capaz de transformar uma vida; duas vidas, melhor dizendo. Sem ponderar as consequências nem os possíveis entraves, virei-me para Vítor e perguntei:

– Gostaria de viajar naquele barco?

Ele abriu, pela primeira vez, um largo sorriso e só então pude perceber como eram alvos e bonitos os seus dentes. A cor morena de Vítor era bastante acentuada e os traços um forte indicador de uma descendência de índio, com olhos arredondados, de grandes cílios e uma cabeleira negra cobrindo quase toda a testa. Intuí seu gesto como sendo um “sim” e olhei o relógio. Quarenta minutos era o tempo que me restava para incluir Vítor como passageiro em meu barco. Como desconfiava, não foi possível. Mas não desisti. Concordaram em transferir minha passagem para outra embarcação com destino a Borba e, para nossa sorte, para o dia seguinte, pois Vítor estaria comigo. Teríamos, então, um dia inteiro para nos prepararmos, ou antes, ao menino, falto de roupas e de brinquedos.

Era uma sensação muito agradável poder olhar aquele rostinho transformado agora junto a mim dentro do barco; um pouco de atenção, um tratamento amoroso fazem realmente uma grande diferença para alguém na situação de Vítor, valem até mais do que a vestimenta que está usando, dando-lhe um aspecto totalmente renovado. Ficaram para trás as unhas sujas dos pés e das mãos, a fisionomia triste e as olheiras da véspera. Deixei que escolhesse as peças ao seu próprio gosto, emitindo algumas opiniões. Caía-lhe bem o bermudão branco até os joelhos, a camiseta amarela e o belo par de tênis com travas. Quanto a mim não senti o cansaço e nem o tédio da viagem, pois tive em Vítor o meu passatempo.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 08/02/2011
Reeditado em 11/02/2011
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