RIBIMBELA DA PARAFUSETA

R I B I M B E L A D A P A R A F U S E T A

Nem sempre a boca torta é prova de que o aleijado usava cachimbo.

Tenho um amigo que dirige veículos, e até caminhões, há mais de trinta anos, portanto deveria saber de cor e salteado os nomes e funções das peças de um automóvel, mas o referido amigo não fuma cachimbo nem sabe o nome da maioria das peças de um caro, tão pouco sabe para que sirva as poucas que conhece.

O mesmo se aplica a mim, e um outro amigo comum a nós dois, chamado Moskito, não é Musquito, no nome dele não tem “U” nem “Q” , é com “O” e “K”. Este não é o nome dele, é apelido; o nome dele não esclarece o caso. A idade também não, mas somos parecidos em muitas coisas, como diferentes em outras tantas. E por falar em idade, a diferença entre nós é bem acentuada. O Moskito é o mais novo, exatamente não sei quantos anos, é um meninão, deve ter por volta de dezoitos anos; eu ainda não completei vinte e cinco; já o nosso outro amigo, Raimundo Júnior, sim senhor! Este é o nome dele; pois é, ele completou sessenta anos em janeiro deste, mas está em forma; e é um amigão.

Nós três; eu, o Moskito e o Raimundo Júnior, resolvemos fazer uma viagem rápida, de final de semana, de menos de quatrocentos quilômetros entre ida e vinda.

O destino de nosso passeio seria um riacho piscoso e favorável ao banho natural (nu como no nascimento). Onde faríamos um acampamento improvisado; com fogão sendo uma trempe de pedras ajustadas em paralelo, o combustível para ela seria lenha, disponível com fartura nas proximidades; o teto não de cinco estrelas, mas de todo o céu acima de nossas cabeças. Quando muito durante o dia uma sombra rala, fornecida pelas as folhas de uma frondosa gameleira, já conhecida nossa de outros carnavais e finais de semanas em ócios.

Adquirimos os comes e bebes, entre eles cachaça, cerveja, refrigerecos, sardinhas, salame, lingüiça; e como não poderia faltar a carne para churrasco.

Os três somos funcionários públicos, e aquele final de semana seria prolongado, ainda mais que o feriado era na quinta-feira, a sexta-feira a enforcaríamos. Pois bem, saímos na quarta-feira, antes do fim do expediente, por volta das 16:00h; o que daria para chegarmos ao nosso destino de dia, com tempo para limparmos a área de possíveis e indesejáveis insetos, e ainda azeitar as coisas nos seus devidos e aceitáveis lugares.

Logo que saímos da cidade, duas fêmeas, mais que humanas, e boazudas; deram sinal de querer carona. Sinal caracterizado por sorrisos e o dedo polegar apontando para a direita delas.

O Raimundo Júnior, sorrindo se virou para traz, onde eu estava e sugeriu mais que perguntou:

- E aí, levamos elas?

Não sou puritano nem santo, muito menos moralista, tão pouco era o chefe daquela expedição; nem sei o porquê fui o consultado. E para confirmar minha imparcialidade, cutuquei o Moskito, que estava do lado do motorista, e perguntei:

- O que você acha Moskito?

- Estou de pleno acordo. Se é que cabem elas no carro.

Como o carro já estava quase as ultrapassando, o Raimundo Júnior meteu o pé no freio, fazendo com que os pneus derrapassem e chiassem no asfalto. Mas parou.

Todas sorridentes, as duas que não tinham bagagem nenhuma, nem mesmo bolsa de mão, se encaminharam para a porta traseira, visto que era onde tinha vaga.

Eu pelo lado de dentro destravei e abri a porta, do lado direito, e antes que qualquer uma delas entrasse, saí; e em sinal de educação e civilização as cumprimentei; fazendo questão de pegar nas mãos:

- Boa tarde! Eu sou o Zé Puleiro, este aqui é o Moskito e o motorista é o Raimundo Júnior.

Não ficamos sabendo se pelo os nossos nomes, por alegria ou falsidade pura, ambas sorriram quase até a gargalhada.

A primeira delas que pegou minha mão, o fez com vigor e prazer; apertou sem exagero e deu o arranque característico de um cumprimento como deve ser sem quase arrancar o braço e nem balançá-lo como para fazer largar um bicho que está grudado e nos faz pavor; e respondeu bem audível:

- Boa tarde! Eu sou a Rosa.

Pensei que ela fosse apresentar a amiga, mas qual o que. A outra, no entanto, mal fechou os seus dedos nas pontas dos meus, foi apenas um toque, sem interesse nem satisfação; nem ao menos se dignou a pronunciar boa tarde, tão pouco abanou o rabo.

Quando desci antes delas chegarem ao carro, é por que estava prevendo me sentar entre elas, para desfrutá-las em igual teor e sabor, mas quando do primeiro contato, tanto verbal como pelo tato das mãos, voltei atrás, e mudei de idéia; resolvi ficar longe da antipática e o mais perto da Rosa. Para tanto abri a porta e fiz com que a não identificada entrasse primeiro, se sentasse bem atrás do Raimundo Júnior. Depois da mocréia entrou a gostosona, para ficar no meio, e eu por último para ficar junto à janela, bem atrás do Moskito.

A primeira a entrar não se deu por achada, não disse nada a nenhum dos meus amigos, nem mesmo aquele sorriso amarelo que ela tinha nos lábios para facilitar a carona. Porém a Rosa, ao entrar fez questão de pegar e apertar a mão de cada um deles e desejar-lhes boa tarde. Ao me sentar, como que acidentalmente encostei o máximo nela. Como nós dois estávamos de bermudas foi um contato de primeiro grau, perna com perna, que por sinal... que pernas!

Não só as pernas, pés, joelhos, cintura, nádegas, barriga, umbigo (de fora), busto, pescoço, queixo, boca, dentes, nariz, olhos e cabelos, tudo nela era lindo; e com o advento de internamente também ser bonita.

A outra... bem, era a outra. Não deixava de também ter um belo par de pernas, mas... era só.

O Raimundo Júnior engrenou a marcha, pisou no acelerador, soltou a embreagem e... lá fomos nós. Com a desculpa de prestar atenção no trânsito atrás de nós, de minuto a minuto ele olhava pelo retrovisor interno; chegou mesmo a regulá-lo melhor. Melhor para namorar a boazuda do meu lado. Nem ao menos uma única vez prestou atenção na outra sirigaita.

O Moskito não deixava por menos. Naquele seu sorrisinho de gato de olho no peixe, também se virava para traz de instante a instante para ver e apreciar a gatona. Tão somente na primeira virada para traz ele viu tudo que tinha que ser visto na outra; e não mais a viu, ou pelo menos fez de tudo para não vê-la.

Não sou bom de papo, meus amigos também não, as meninas parecia que menos ainda. Só para quebrar o silêncio incômodo perguntei:

- Vocês vão para onde?

A Rosa, mais que depressa respondeu:

- Para a fazenda de uma amiga.

Depois de uma resposta vaga como esta; não me atrevi a fazer outra.

O Moskito, curioso como ele só, não agüentou e perguntou; uma pergunta também vaga, característica dele:

- Esta fazenda fica longe daqui?

Até que enfim ouvimos a voz da outra; uma voz de taquara rachada:

- Mais de noventa quilômetros.

Ela não deu mais explicações e nenhum de nós às exigimos.

Seguimos como cinco estátuas em cartas de baralho; sem movimentos aparentes, sem discernimentos dos outros, nem cores específicas, sem fazermos sons e sem nexos.

Depois de mais de uma hora e vinte minutos de viagem, a uma velocidade média superior a noventa quilômetros por hora, estranhei que elas não chegassem ao destino. Deixei rodar mais alguns quilômetros. Percebi que o Raimundo Júnior, também estava achando estranho, a todo o momento ele olhava o odômetro, agora estava mais preocupado com este do que com espiar a gostosona pelo retrovisor.

O Moskito, que tínhamos como sonso, também estava percebendo algo errado, inquieto e de relance, às vezes, olhava a quilometragem rodada.

Seja o que Deus quiser! O que tem que fritar assa logo. Se quiser saber de algo pergunte. Foi o que fiz, sem ser ignorante, sendo educado:

- Os noventa quilômetros de vocês já se foram, não?

A taquara rachada deu a explicação:

- Na verdade somos garotas de programa, estávamos esperando fregueses, aí vocês apareceram...

Nunca havia estado dentro, nem visto um carro derrapar numa freada tão brusca. O Raimundo Júnior meteu o pé no freio com gosto de gás; este travou as quatro rodas, embicou para a pista da esquerda, o volante foi rodado para a direita; o bicho investiu para este lado e parou com as duas rodas dianteiras penduradas fora do acostamento, num desnível de aterro, de mais ou menos uns seis metros.

Ficamos os cinco com cara de tacho.

O primeiro a descer, para não facilitar a queda na ribanceira, foi o Moskito, seguido da taquara rachada e depois o motorista.

A Rosa e eu, antes de descermos tínhamos que acertar umas falas. A olhei bem dentro dos olhos, mas que justifiquei do que perguntei:

- Não é que sejamos os mais fiéis e puritanos dos homens, mas como vocês fizeram a coisa; não acha que iríamos não querer assim?

- Você tem razão. Não devíamos ter deixado ir tão longe. Foi errado.

- Já que estamos aqui neste ermo, mais de cento e trinta quilômetros longe de nossas casas, o melhor que temos a fazer é continuar.

- Se vocês preferirem ficamos aqui.

- Quase noite, longe de tudo e de todos, não. É melhor não, e afinal onde comem três comem cinco.

Descemos do carro, ambos pela porta da esquerda, para evitar o desbarrancado à frente e á direita.

Como que marcada com antecedência e através de memorando timbrado, fizemos uma reunião séria, para tratarmos de um futuro bem presente, de negócios um tanto quanto escusos.

O Moskito foi logo propondo o que ele considerava justo e correto:

- Vamos fazer um sorteio para ver quem fica com quem.

Como ninguém se opôs, ele providenciou os meios e as regras, que por sinal eram bem simples. Consistia em quatro palitos de fósforo, retirados do nosso suprimento da cozinha; entre os quais dois tinham cabeças e dois não. E para melhor compreendermos ele explicou as regras:

- Aqui dentro da minha mão estão os quatro palitos, todos com o lado dos pés de fora. Vocês dois retirarão, alternados, cada um, um palito. Se ambos retirarem os palitos com as cabeças eu fico sem ninguém, mas se um de vocês retirarem um palito sem cabeça significa que este ficará sozinho. E para que elas também tenham a chance de ficarem sem ninguém; caso vocês dois tirem os dois palitos sem cabeça, significa que ficamos como estamos cada um por si e Deus por todos.

Todos concordamos que este método era justo.

Dei ao meu amigo, Raimundo Júnior, o privilégio de ser o primeiro a retirar um palito. Não deu outra, palito sem cabeça. Se alguém pensava que ele iria ficar triste, não aparentou, muito pelo contrário, seu sorriso que sempre foi “não estou nem aí”, era o mesmo, talvez um pouco mais alegre. Não significava que eu e o Moskito iríamos ficar com as garotas, pois se eu retirasse o palito sem cabeça, por incrível que pareça, parecia trapaça, como de fato retirei; ninguém ficou com ninguém.

Solucionado este pequeno problema, nos apresentava outro, tirar o carro encalhado, pô-lo na estrada e o mais rápido possível seguir viagem. Só que pensar e falar é uma coisa, mas fazer na prática é outra muito diferente.

Juntamos-nos os cinco, já que a união faz a força; e conseguimos por o carro no asfalto, de frente para nosso destino, não sem muito esforço físico e pensar com cinco cabeças. Entramos e nos sentamos nas mesmas posições de antes. O Raimundo Júnior girou a chave, nem sinal. Girou novamente e nada.

Virou-se para mim, como se eu fosse mecânico de ouvido, e questionou:

- Uái! O que foi agora?

Não me fiz de tolo, o sendo até a raiz:

- Eu é que sei?

O Moskito, nunca foi de dar palpite, se calado estava, calado permaneceu.

As duas caroneiras não tinham por que dar pitaco.

Sugeri:

- Tente de novo.

O Raimundo Júnior retirou a chave, recolocou-a na ignição, girou-a... e mais uma vez nem sinal.

Descemos desta vez só eu e o Raimundo Júnior, abrimos o capô; e como nenhum de nós dois sabemos patavina de mecânica, olhamos um para o outro, sorrimos de orelha a orelha; e falamos em uníssono:

- “Deve ser a rebimbela da parafuseta”!

(novembro/1981)

Aleixenko
Enviado por Aleixenko em 07/02/2011
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