Ensaio Sobre a Morte

“Tornei-me inexorável. Que nada abala e que nada fere. De uma natureza humana, mas que não se purga das maldades. Que não se faz cárcere, que não é altruísta com os desejos ou com o dinheiro. Que irrompe no recuo”, pausa. Respirou como quem sofre do mais severo câncer. Fez do coração, pulmão. E continuou. Marta, que de nada compartilhava alí, fosse ideologia, fosse capacidade, fosse doença, não fazia nada além de ouvir – sequer acreditava. “Findei com todos os males aos quais poderia vir um arrependimento. Vi em toda razão, motivo. E injusto, pois na justiça veio um que não é capaz e que se vende sem cumprir, transliterei todo sentimento em voz passiva”, pausa. Veio pelos pulmões e cuspiu sangue. O corpo, compulsoriamente dobrado, cedeu primeiro pelos joelhos, depois pelos cotovelos. E não fossem suas juntas, a enfraquecerem feito a lei, não haveria batido com o rosto no concreto gelado, quebrado o que não era osso, e posto finalmente para dormir. A mulher, num desespero crente em milagres, foi ao chão tal qual ele, mas seu motivo não era de uma obrigação doente, um puxão, tropeço, empurrão, rasteira da morte, que já vinha sondando o ombro do velho como candidato em ano quarto. Apanhou as suas bochechas, já tão ciente de que havia morrido, não se encabulando do fervor com que havia perdido a compostura ou com a intensidade com que chorava. Posta sobre o seu choro, não preocupou-se em chamar por alguma salvação, indo ao telefone como se fosse a um desfibrilador. Sabia ela que era a hora e que não havia ambulância capaz de transportá-lo de volta à consciência. Estava, como ele mesmo havia previsto, vencido. E vencido havia sido o invencível, inalcançável. Os líderes morrem assim: sendo fracos frente ao que é, de inquestionável verdade, imbatível: tempo, tempo que não corrói, mas tempo que assassina. Tempo que não cura, que não resseca. Tempo que retira.