Minha história de vida

Tenho trinta e três anos, sou casada, dona de casa, mãe de uma filha de 10 meses, tenho um esposo maravilhoso, que dá sentido à minha vida. Tenho uma vida verdadeiramente feliz. Mas nem sempre foi assim.

Olho para minha filha, ainda pequenina, prestes a completar seu primeiro aninho de vida, toda cheia de vida, se arrastando de um lado para outro, irrequieta e sorridente. Em silêncio, mesmo sem querer, meus pensamentos me levam a recordar um passado não muito distante, inesquecível, mas que certamente é um passado que desejo nunca mais reviver. E se depender de mim, isso nunca acontecerá.

Vendo-a sentada, brincando com seus chocalhos coloridos e barulhentos, me sento na poltrona a pouca distancia e aos poucos deixo um leve cansaço misturar a lembranças, para não dizer pesadelo, e um mundo cinzento e maldoso me vem à mente.

Nasci filha única de um relacionamento mal resolvido de minha mãe ainda adolescente e um pai alcoólatra, e que mais tarde eu soube, se tornou usuário de drogas, o que trouxe um descontrole absoluto e insustentável para nossa casa. Desde as minhas primeiras lembranças, vejo meu avô materno incansavelmente recriminando minha mãe, pela irresponsabilidade, coisa que ele dizia e repetia numa freqüência insuportável. Era um intolerante incansável, pelo fato de minha mãe ter transado com um namorado que mal conhecia, além de tudo um imprestável, como ele mesmo insistia em dizer.

Essas críticas, intolerâncias e o descontentamento de meu avô tomaram dimensões insustentáveis, até que minha mãe, não agüentando mais, certa noite fez as malas, e em alta madrugada, acordou-me, e segurando a mala em uma mão, minha mão na outra, ordenou-me não fazer barulho. Disse que iríamos para um lugar distante, onde seria possível viver em paz. Apesar de meus seis anos, lembro-me bem que concordei com minha mãe, que ela estaria fazendo a coisa certa. E naquele momento, decidi que a amaria e a veneraria pelo resto de minha vida, sabia que estava fazendo um esforço sobrenatural para preservar-me da constante e infindável humilhação vinda de meu avô.

Não importaria pra onde íamos, mas tinha a certeza que seria para um lugar muito melhor. Desde minhas primeiras lembranças, tudo que eu tinha guardado eram broncas e humilhações por parte dele. Minha avó se mantinha calada, submissa ao marido.

Andamos algum tempo, até que o dia amanheceu e então apareceu um ônibus na estrada sem asfalto, ela acenou para parar e então o pegamos. Já sol alto, em uma parada, minha mãe comprou pão com manteiga e leite quente com chocolate para nós. Era a primeira refeição naquele dia. Minha mãe demonstrava ar de alívio, mas ao mesmo tempo preocupada, sempre olhando para os lados, como que temendo ser flagrada a qualquer momento.

Naquele dia, nossa viagem durou até o fim da tarde. Já perto de sol se por, chegamos em uma cidade que eu não conhecia. Descemos na parada, minha mãe segurando a mala e a minha mão, conduziu-me ao que penso ser uma pensão, ou algo parecido. Lembro que ela combinou o valor, pagou e recebeu as chaves das mãos de uma mulher morena, gorducha e simpática.

Já no quarto, que tinha apenas uma cama, iríamos dormir juntas, minha mãe botou a mala em uma mesinha ao lado, abriu-a, pegou roupas minhas e dela e chamou-me para tomar banho com ela, como fazíamos com freqüência. Para mim, apesar do dia de viagem, era divertido, estava vivendo novidades. Mas vi em minha mãe, a manifestação de angústia, tristeza e mágoa. Ela tomou banho muito mais demorado que de costume. Depois, secou os cabelos, se vestiu e disse que sairíamos para jantar. Eu estava com fome.

Saímos da pensão, minha mãe estava mais alegre, dava para notar. Sentamos à mesa de um restaurante, ela pediu um prato feito e mais um prato vazio e dois talheres. Quando foi servida, ela o dividiu comigo. Comemos muito, o prato era grande. Depois voltamos para a pensão e nos deitamos. E antes do sono chegar, ela me abraçou, me fez carinho, a gente brincou na cama, dos divertimos. Ela era outra pessoa. Estava feliz, podia-se ver. Fazia muito tempo que isso não acontecia.

Nossa permanência naquela pensão durou muito tempo, nem me lembro quanto. Mas o certo é que ela saía sozinha, me dizia que ia trabalhar e eu deveria ficar quieta no quarto, não deveria abrir a porta para ninguém.

No ano seguinte, na época de matricula escolar, minha mãe me matriculou e eu comecei a estudar. Nessa época parece que o trabalho dela estava indo bem, e ela alugou uma pequena casa para nós duas e pouco a pouco foi comprando mobílias. Foram tempos maravilhosos, minha vida estava bem, minha mãe era meu universo e eu o dela. Mas eu nunca sabia onde ela trabalhava, nem o que fazia. Muitas vezes eu perguntava, ela desconversava e não dizia.

Nossa vida transcorria feliz, vivíamos uma para a outra. Com o tempo fizemos amigos, a vida era-nos boa e aquelas agressões ficaram para traz, num passado que eu não desejava reviver.

Quando eu completei quinze anos, nossa vida estava estável, eu estava na escola, tudo estava bem. Foi aí que minha mãe me tirou o chão. Revelou-me que desde que mudamos da casa de meu avô, a profissão dela era prostituta. Não sabia nenhum ofício e não teria como sustentar a nós duas se não fosse assim. Aquela revelação acabou comigo. Eu não fazia idéia que era filha de uma puta. Fiquei arrasada, deixei de falar com ela. Eu não acreditava que tudo que eu tinha, que vestia, que comia que me divertia, era fruto de dinheiro de prostituição.

Fiquei um mês sem falar com ela. E isso me fez muito mal. Nesse tempo pude refletir sobre tudo, sobre a atitude de minha mãe. E me vi pensando que se fosse comigo, provavelmente eu teria feito a mesma coisa. Quando minha rainha chegou, já alta noite, não me contive e a abracei com toda força e amor que poderia. E pedi perdão pela minha atitude, eu estava sendo injusta com ela. Nos reconciliamos e então voltamos a nos sorrir, nos divertir, como sempre fizemos. A paz voltou à nossa casa. O universo voltou a ser de nós duas.

Mas nossa paz não durou muito tempo. Perto de dois ano depois, minha mãe começou a perder peso, sem explicação. Então a acompanhei a um posto médico, para consulta. Depois da consulta e os exames, veio o resultado que nos tirou o chão: ela estava com leucemia. Aquela revelação me fez desabar. O tratamento era lento e não tínhamos muitas esperanças. Conversávamos muito, apesar da doença, ela sempre se mostrara minha companheira, minha fonte de inspiração.

Aos vinte anos, comecei a me prostituir para pagar as nossas despesas e os remédios de minha mãe. De início, cada vez que um homem tocava em mim, em morria um pouco. Mas tinha de ser forte, era a justa retribuição para minha mãe. Larguei os estudos, antes de terminar o segundo grau, enterrando um sonho de ser enfermeira. Não conseguiria continuar.

Desde então, minha vida se resumia nisso: vender meu corpo para sustentar a mim e à minha mãe. Passado pouco menos de dois anos, o pior aconteceu: minha mãe não resistiu à doença. Foi a pior dor que eu jamais sentira e imaginava suportar. Me afastei de meus amigos, minha vida se resumia ao meu minúsculo mundo individual.

E minha rotina se resumia a ir numa casa imunda, fazer programa para me sustentar. Não gostava daquilo, mas não tinha disposição para mudar nada em minha vida. Me mudei para um cômodo apenas, onde o aluguel era mais barato, vendi parte da mobília, minha vida se degradava visivelmente e rapidamente. Muitas vezes dormi embriagada

Nem roupas eu tinha mais, quase sempre vestia um conjunto de saia e blusa branca, de alcinhas nos ombros. Nas noites frias, vestia jeans, que não eram tantos.

Quando fazia programa, recebia o dinheiro e ia jantar em um restaurante que tinha por perto. Se não fazia programa, ia pra casa e dormia com fome ou comia alguma sobra de biscoitos ressecados que pudesse ter no armário. Sentia uma vergonha medonha, mas os garçons me tratavam bem, sabiam que eu fazia programa. Eu era apenas mais um cliente. Certamente aquilo não lhes interessava.

Apenas um deles era mais atencioso, me atendia com dedicação. Apesar de gentil, nunca me dirigiu a palavra além das formalidades de cliente/vendedor. No seu dedo via uma grossa aliança. Era casado.

Sua mulher tinha muita sorte, ele era um homem respeitador.

Nessas idas e vindas, tive clientes de toda sorte. Uns gentis, uns agressivos, uns sádicos, outros com comportamentos completamente distorcidos, inexplicáveis, masoquistas. Tinha vinte e cinco anos, mas aparentava quarenta ou mais, nem sei.

Mas dentre estes, começou a visitar-me um que de certa forma me chamava a atenção. Era gentil, carinhoso até. E sempre me pagava mais que do que o valor que eu cobrava. Suas visitas começaram a se tornar freqüentes, eu comecei a sentir falta dele, quando não aparecia.

E isso durou perto de um ano. Toda vez que ele vinha, a gente conversava, falava de nossas vidas, eu lhe depositei confiança e contei-lhe toda a trajetória de minha vida. Percebi que prestava atenção a cada detalhe de minha narrativa. Ele também falou de sua vida, de suas angustias e dores. Soube que era um homem de bem, já fora casado, mas seu casamento fracassou. Não tinha filhos.

Eu passei a confiar naquele homem, via nele uma luz de esperança para minha vida. E ele passou a visitar-me com muito mais freqüência. Chegou ao ponto de eu ficar só com ele. Não queria mais outros clientes.

Então, em uma noite memorável, ele disse que queria que me casasse com ele. Claro que aceitei o pedido. Nessa mesma noite, após ter relações com ele, fui convidada a jantar no mesmo restaurante onde já estivera antes, incontáveis vezes. Seria a despedida. Jantamos, penso que foi uma das noites mais felizes dos últimos tempos de minha vida.

Depois, ele dizendo que eu teria uma surpresa, conduziu-me ao seu carro, não lembro a marca, mas sei que era branco, o mesmo que ele usava sempre que vinha me ver. Gentilmente ele abriu-me a porta, entrei, ele fecho-a e tomou a direção e se dirigiu para um lugar que eu não conhecia bem, era outro lado da cidade que eu nunca freqüentara. Era uma região da dita classe alta.

Lá chegando, ele me conduziu ao interior da casa, dizendo que dessa noite em diante ali seria a minha casa. E me deu o maior presente que eu jamais poderia acreditar ter de volta: amor, paz no coração, felicidade, enfim.

Disse me amar, no que eu nunca duvidei. Suas atitudes comigo eram por demais cativantes, carinhosas e convincentes, não tinha como ser diferente. Por minha vez, eu me descobri amando aquele homem. Sim eu aprendi a amá-lo. Era a primeira vez que experimentava esse sentimento por um homem.

Hoje, aqui sentada nessa poltrona, vendo nossa filha inquieta, recordo toda essa trajetória de vida. Poderia ter sido diferente, poderia ter sido escrita de outra forma. Alguém poderá me censurar, sugerindo que eu poderia ter encontrado outra forma de me manter. Mas está feito, não tem volta. Provavelmente não faria tudo de novo, não sei dizer. Mas hoje sou feliz e é isso que conta. Peço perdão a Deus todos os dias, pelo passado que vivi. de certa forma é sim, uma marca escura em minha vida. Mas não tem volta e não vou me martirizar por isso.

Espero impaciente o fim do dia, quando então ele chega do trabalho. Sei que será carinhoso e atencioso com nós duas, como sempre foi, desde o conheci, continuou depois que me mudei para essa casa, e multiplicou desde a minha gravidez e derreteu todo, com o nascimento da nossa filha. Percebo sim, a possibilidade de fazê-lo feliz, tanto quanto ele faz a mim.

Deixo uma história triste para traz. História que um dia contarei à nossa filha. E sei que ele estará ao meu lado, me dando a segurança que precisarei.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 03/02/2011
Reeditado em 26/01/2012
Código do texto: T2769169
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