Incidentes de Natal na vida empresarial

INCIDENTES DE NATAL NA VIDA EMPRESARIAL

Confirmação de contrato

- Vera?

- Marco?

A pergunta, à laia de resposta a outra pergunta, constituiu o lance retórico de reconhecimento mútuo entre a acompanhante e o cliente que a esperava no hall de um hotel do Porto onde se alojara, vindo de Lisboa por razões que considerava profissionais; estava combinado o jantar mas em aberto o prolongamento do serviço.

- Ainda é mais bonita do que na fotografia que me mandou… sentamo-nos um bocadinho no bar … para assentar … ideias? Nova pergunta retórica porque Marco, sem esperar resposta, para lá se dirigiu. Ela acompanhou-o e sentaram-se ambos, ele visivelmente nervoso. A verdade é que não tinha qualquer experiência daquele tipo de encontros. Nem de outros. E daquele preço só agora se podia dar a tal luxo; ela fixara primeiro por e-mail e depois por telefone, os 100 euros por hora com a possibilidade de redução se ficasse toda a noite e pudesse dormir pelo menos seis horas; a combinar quando se encontrassem, antes ou durante o jantar que, esse, tinha ficado assente. Pagamento antecipado e em notas, os cheques davam-lhe azar, segundo explicara.

Anos de namoro quase platónico com a pudibunda filha de um importante dirigente do seu partido não tinham dado a Marco grande experiência na abordagem e ainda menos na condução da relação com mulheres. O namoro acabara quando a rapariga se tornou amante dum amigo do pai, administrador da empresa onde lhe tinham arranjado um lugar de directora mal acabara o curso e só lhe reforçou as inibições que o limitavam. Nem o namoro nem a dedicação à causa da juventude partidária lhe tinham permitido a ele mais do que dar umas aulas num Instituto Superior, privado, claro, superpovoado de antigos membros de governos vários nas listas de professores, todavia raramente por lá vistos. Sobrevivera, podia escrever nos cartões “docente do Ensino Superior” e essa qualidade devia ter contribuído para o chorudo financiamento que recentemente tinha obtido, via União Europeia, com ampla margem de manobra para contratações e movimentação de fundos, para um trabalho de análise sociológica que denominara “Intermitências da luta de classes. A concertação social como motor da História”. Só o mandaram retirar o primeiro período do título e recomendaram que no corpo do trabalho usasse outra expressão para exprimir eventuais interesses divergentes. Eram esses fundos que ia agora usar nesta vinda ao Porto para iniciar trabalho, logo a seguir ao Natal que passaria com a família em Amarante, com um ilustre sociólogo local recomendado por um outro, seu protector, polivalente e com peso no governo e no pedido e obtenção do financiamento. Ia investir também e muito merecidamente, a seu ver, na sua própria formação pessoal, muito débil nos aspectos já referidos.

- Não te importas de jantar aqui no restaurante do hotel? Eu disse a um amigo, bem …a um conhecido meu, um chato, que quer meter uma cunha para trabalhar no meu projecto, que jantava aqui … mas se preferires outro sítio …

- Serve … mas com visita de amigo deve durar umas duas horas … e como ficou combinado …

- Sei, sei. Vamos já resolver … ficaste de dizer como era se passasses cá a noite … estou a contar com isso!

- Ainda não tinha pensado …como estou a simpatizar contigo … e com o hotel … digamos 500 euros mas não podes contar comigo depois de acordar de manhã … sou péssima companhia quando acordo e tenho de sair cedo, lá para as nove, que ainda me faltam umas compras de Natal.

Saiu-lhe aquele valor por ser o que contava gastar nas prendas para a mãe e o namorado; ele merecia uma especial por não só ter retomado o projecto de casamento como por nunca mais ter falado no assunto que os tinha feito interrompê-lo. Chegava no dia seguinte de Madrid, onde trabalhava, já véspera de Natal, consoaria com a família dele mas iria a seguir a casa da mãe dela para a troca de presentes. Não tinha, nem tinha que ter, qualquer ideia sobre este seu negócio e era de uma tão tocante ingenuidade que ela só projectava interromper a actividade de acompanhante, bem … em caso de força maior.

O Marco entregou-lhe um maço de dez notas de cinquenta euros. Por acaso era o que tinha separado por ter decidido que era quanto ia gastar naquela noite de formação sócio erótica e ela fê-lo desaparecer tão depressa que ele nem percebeu onde o tinha metido.

- Deixa-me falar para casa a dizer onde estou e quando volto e a seguir vamos então jantar – disse a Vera, dando a entender ao cliente, como medida de precaução, que estaria localizada. Mandou à mãe uma mensagem escrita a dizer que andava às compras e ficava a dormir em casa da Madalena, amiga que a mãe não apreciava muito, desligou a seguir o telemóvel, verificou que o outro, o dedicado exclusivamente a negócios, também estava desligado e levantou-se para se dirigirem ao restaurante.

Implementação do contrato

O jantar correu lindamente. O amigo da cunha apareceu logo no início com um envelope A4 que, segundo informou, não continha propriamente um currículo mas apenas um memorando com a indicação do que poderia ser útil à colaboração sugerida e convidou o casal para beber um copo depois do jantar na movida nocturna do centro do Porto, segundo ele a mais animada do país e a pedir meças à de muitas capitais da Europa. Perante a notória hesitação de Marco, Vera afagou-lhe uma mão e com um olhar de carneiro mal morto balbuciou um tão simples “não dá …” que mais parecia uma declaração de amor e de pressa de ver o outro pelas costas. O amigo assim o entendeu, chamou de novo a atenção para o envelope e despediu-se para não criar anti-corpos prejudiciais às suas pretensões. O próprio Marco convenceu-se de que ela queria ficar só com ele e inchou com o orgulho de saber o amigo também convencido de que ele tinha feito uma conquista. A rapariga além de bonita, bem-feita e vestida com uma certa elegância, parecia interessada nele. Afirmara-se aluna de mestrado, pós Bolonha, em Biologia, no que ele fingira acreditar mas …

- Estás mesmo em Biologia? Não conseguiu evitar a pergunta denunciante da dúvida mas ela não pareceu ofendida com isso.

- Estou mesmo … a minha dissertação de mestrado, se queres saber, é um estudo de uma variedade de tomilho que é uma planta aromática, condimentar e medicinal. A variedade de que trato só cresce numa estreita faixa arenosa do litoral algarvio, chama-se Thymus carnosus e como tem um aroma mais delicado é provável que tenha melhores aplicações em perfumaria que as outras variedades. Não tenho hipóteses de estudar as diferenças do ponto de vista condimentar, mas não parecem significativas, nem do ponto de vista medicinal … o que seria bem interessante.

Disse-o tão convicta e de rajada que as dúvidas se lhe desvaneceram mas em compensação fizeram ressaltar as discrepâncias que encontrava naquela dualidade de actividades.

- É interessante … e insuspeitado nesta tua … como vieste para esta … profissão?

- Acompanhante não é nem nunca foi, em nenhuma das suas vertentes, uma profissão porque uma acompanhante faz o que toda a gente faz, melhor ou pior, mais ou menos frequentemente; uma profissão só o é quando são poucos os que já se dedicam ou ainda se dedicam a uma dada actividade. Sobretudo na vertente sexual esta é uma actividade empresarial, porventura o seu mais antigo modelo, o primitivo. A minha Universidade tem promovido numerosas acções de incentivo ao empreendedorismo, à criação da empresa do próprio emprego, já que não os há e os que há pagam o que se sabe, sem horários, sem garantias, cheios de exigências e até de humilhações … Não foi preciso pensar muito … outros tipos de empresas … ou exigem muito capital e ficas na mão dos capitalistas ou exigem pouco. E nestas ou tens sucesso e és comido a seguir pelas grandes ou não tens sucesso e ficas pior do que já estavas. Esta minha área empresarial tem excelentes nichos de mercado, sem chatices com a contabilidade nem com as Finanças. E desempenha ainda um grande papel de tamponamento da revolta social de tão grande que é o número de pessoas e até de outras empresas que ajuda a sustentar. Já viste a contribuição que os anúncios de concorrentes minhas dão ao sustento de alguns jornais? Sobreviveriam sem isso? E até estações de TV…

- É uma questão que diz respeito à minha área, a Sociologia; vou-me interessar por ela …

- Não te interesses muito senão não vais longe e ainda arranjas chatices …

A conversa prosseguiu por algum tempo à volta do mesmo tema e depois sobre o projecto de Marco até a Vera reparar que ele tinha bebido quase duas garrafas de vinho. Propôs então: “Subimos?”

No quarto ele pretendeu desajeitadamente despi-la mas ela contrapôs “dispo-te eu” e tirou-lhe o casaco; despiu-se depois ela, arrumando cuidadosamente a roupa e envergou uma T-shirt e calção curto. Começou então a despi-lo a ele beijando-o no pescoço de vez em quando e logo que o teve nu deitou-se de costas e segurou-lhe a cabeça contra os seios que ele começou a beijar depois de lhe levantar a T-shirt. Não se deu conta se ela subia na cama ou lhe empurrava imperceptivelmente a cabeça para baixo, mas estava agora a beijar-lhe a barriga perto do umbigo; o calção dela tinha desaparecido mesmo sem ele lho ter tirado. Levantou a cabeça para lhe ver a cara. Tinha os olhos semicerrados e a boca aberta numa indesmentível expressão de prazer. Perpassou-lhe pela mente uma questão insidiosa: era assim que os outros clientes procediam e ela gostava ou estava a gostar exactamente por ele proceder de forma incomum e tão meiguinha? “Não pares” disse ela e encostou-lhe a cara um pouco mais abaixo do que já estivera. Continuou a beijar-lhe a barriga, excitado pelo prazer dela que agora arfava, até que um súbito golpe de anca e as mãos dela mais firmes na sua cabeça o fizeram aterrar de boca aberta onde pelos vistos ela queria. A “pista” era macia, quente e húmida. Talvez tenha sido isso que o fez evocar uma cena de filme pornográfico em que vira três marmanjos ejacular para o local que estava agora como que a beijar algo involuntariamente. Nunca saberia se tinha sido do vinho ou da cena evocada: o vómito foi incoercível e abundante. Ela pressentiu-o e deu um salto que não lhe evitou os salpicos. Saltou fora da cama, arrebanhou a roupa da cadeira onde a tinha arrumado e entrou no quarto de banho. Quando saiu vinha vestida e só disse: “Nem o quarto nem tu têm condições para eu cá continuar. Podes tornar a telefonar … um azar qualquer um tem”. E foi-se embora. O Marco não se tinha mexido. Sentia-se num buraco de onde não conhecia ajuda para sair.

Percalços

A Vera entrou no carro que tinha deixado estacionado em frente ao hotel, do outro lado da rua, trancou as portas e pô-lo a trabalhar. O relógio marcava as duas da manhã. Avaliou a segurança do local; era visível do hotel, não passava ninguém e não era muito tarde. Verificou que tinha o dinheiro no cano do botim e mudou-o para debaixo da planta do pé. Tirou da saca o telemóvel particular e ligou-o. Ia dormir a casa e queria mandar mensagem à mãe a desmentir a anterior para ela não se assustar se ouvisse algum barulho. Tinha uma mensagem de texto. Desagradável. Do namorado. De uma hora antes: “Consegui vir hoje. Fiquei a saber que chegasse para não querer saber mais de ti. Se tentares contactar-me arrependes-te”. Havia duas chamadas dele, não atendidas, às 11 e à meia-noite e meia hora e sem mensagem de voz. Desconfiava de alguma coisa caso contrário deixaria mensagem como era hábito. Ignorou a ameaça e ligou-lhe. Respondeu-lhe o voice mail com a voz e a identificação do pai dele: “Ligou para Francisco … Neste momento é-me impossível atender. Por favor deixe recado ou ligue mais tarde”. Mau sinal ter metido o pai ao barulho. Tinha de lhe ter entregue o telemóvel e fornecido indicações suficientes para ele assumir no voice mail que o número, agora, lhe pertencia. Ir a casa dele, onde de certeza o namorado estava, tornava-se inconveniente; o pai barrar-lhe-ia garantidamente a entrada e o acesso ao filho. Nunca gostara dela como possível futura nora, doutro modo talvez, estava segura disso muito antes de ele lhe ter dirigido, olhando-a bem nos olhos durante uma curta ausência do namorado, a frase assassina: “Pode contar com o que quiser da minha parte … se resolver ir pregar para outra freguesia”. E tinha-se eclipsado antes de o filho voltar. Não quis pensar mais nessa penosa cena. Ver se a ameaça de corte tinha remédio, e não parecia, obrigava, agora que o contacto imediato estava impedido, a procurar saber o que é que o namorado tinha sabido desde o primeiro telefonema até à mensagem de texto. Arrancou com o carro em direcção a casa.

Ia ter de acordar mesmo a mãe para saber se teria dito ao namorado que ela ia dormir a casa da Madalena. Se tinha também se veria obrigada a acordar a amiga, pelo telefone, se ela o atendesse, ou indo lá a casa mesmo a meio da noite. A partir do que ela dissesse podiam construir uma história adequada. A ideia tranquilizou-a mas logo a seguir ocorreu-lhe uma possibilidade tenebrosa: e se o namorado tivesse visto o carro dela parado perto do hotel, lhe desse na cabeça entrar e a tivesse visto a passar do restaurante para o quarto? A hora do primeiro telefonema não tornava impossível essa eventualidade; mas o modo habitual de proceder do namorado e a atenção que prestara a quem com ela se tinha cruzado naquela passagem tornavam-na altamente improvável. Mesmo que assim tivesse sido considerava-se capaz de arranjar uma justificação aceitável… pelo namorado, claro. Nem que tivesse de inventar a procura de um emprego na colaboração no projecto idiota do cliente e tivesse de meter este ao barulho. Seria misturar a vida empresarial com a familiar … mas … se o tivesse feito não desligando os telemóveis, nada disto teria acontecido. Na pior das hipóteses devolveria parte do pagamento ao cliente ou proporia completar o serviço em data a designar e teria ido ao encontro do namorado. Lembrava-se vagamente de ter ouvido (ou lido?) qualquer coisa sobre a necessidade de criar filtros que impedissem interferências da vida familiar na vida empresarial e vice-versa … tinha de pensar nisso … Também tinha de pensar num balanço previsional: se deixasse tudo como estava poupava a prenda para o namorado e podia levantar-se mais tarde no dia seguinte deixando para depois do Natal a hipótese de tentar recuperá-lo … ou não. Estacionou o carro à porta de casa. Decidiu … deixar o acaso decidir. Se a mãe acordasse iniciava manobras de recuperação ainda que perdesse a noite. Se não acordasse deixava andar. Resolveria no dia seguinte se comprava na mesma, para o que desse e viesse, a prenda para o namorado. Não podia era deixar que um percalço originado pela sua dedicação à vida empresarial lhe estragasse a véspera de Natal. Fechou o carro, pensativa. Mas ao abrir a porta de casa, talvez devido ao frio da rua, duas grossas lágrimas abriram caminho pela cara abaixo…