Musa do passado

MUSA DO PASSADO

Em meados do séc. XX as musas inspiradoras da poesia e doutras actividades menos confessáveis dos meus colegas de liceu eram sobretudo as estrelas de cinema. Mas para os mais vadios, os que mais faziam gazeta a aulas do meio da manhã ou se deslocavam a partir do meio da tarde pelos cafés das redondezas, em geral para renhidos jogos de bilhar ou partidas de dominó, rentáveis às vezes desastrosas outras, havia uma, mais próxima e mais personalizada que morava mesmo em frente ao liceu. Vê-la era privilégio dos faltosos porque ela não saía nem entrava em casa às nossas horas normais de entrada ou de saída. A meio da manhã saía provavelmente para fazer compras, mas já impecavelmente vestida e muito bem penteada, de casaco comprido, e que casaco! no inverno, mas sempre com um decote generoso se bem que não indecente ou excessivamente provocatório. Ao fim da tarde era muitas vezes vista a sair, igualmente ou ainda mais bem vestida e penteada, com o marido e um rico e muito conhecido dono de uma fábrica de tecidos.

A D. Fernanda era de facto uma inspiração: o corpo era tal e qual o que imaginávamos que fosse o da Sofia Loren e a cabeça, embora talvez menos sensual dava-lhe um ar mais doce e era de beleza mais delicada. O marido era bem mais velho do que ela, de bochechas flácidas, careca na metade dianteira da cabeça e mais ou menos da altura com que ela se apresentava, sempre com sapatos de salto bem alto. O Navarro, o industrial que sempre os acompanhava, era um pouco mais baixo e mais novo do que o marido, mais bem constituído e muito moreno, de cabeleira farta e encaracolada. O trio não proporcionava visões muito prolongadas porque o Navarro estacionava o carro, em que sempre saíam, à porta do casal ou o mais próximo que lhe era possível. Olhares mais atrevidos ou inquiridores, cochichos entre passantes ou dichotes lançados a distância segura pareciam não afectar a serenidade da senhora como não a alteravam as atenções que os companheiros, notoriamente lhe dedicavam.

Por mim, confesso que bastantes vezes faltei às aulas da manhã mantendo-me a cirandar pelas redondezas para lhe lançar olhares incendiários que pudessem transmitir-lhe o que, na noite anterior, na minha imaginação, tinha feito com ela. Para ser honesto devo dizer que nunca vislumbrei a menor sombra de “resposta” às minhas tímidas abordagens. Com pequenas variantes, a avaliar por confidências feitas e recebidas, era também essa a história de numerosos colegas meus.

No terceiro período do meu último ano do ensino secundário o marido morreu, de repente, segundo a informação que circulou no meio restrito dos inspirados pela musa. Como nessa altura deixei de vadiar devido à aproximação dos exames, deixei de poder ver se a senhora ficou a morar no mesmo sítio, se saía, se vestia de luto …

No meu segundo ano de engenharia comecei a ganhar bem, atendendo a que tinha as despesas pagas pela família, dando explicações de matemática a alunos do meu antigo liceu numa salinha da casa onde vivia num quarto alugado. Num sábado à noite, quando deambulava pela Praça da República hesitando entre encontrar uma prostituta na rua ou procurá-la numa famosa sala de baile, aí localizada e por elas frequentada, encontrei o meu antigo colega Castro, conhecido não só pelas numerosas reprovações como por ser uma autoridade na matéria a que agora me dedicava, a sair daquela prestimosa instituição. Abraçamo-nos com indisfarçável entusiasmo e a primeira coisa que ele me disse foi: “Não entres; está abafadíssimo e é só coiros. Além disso preciso mesmo de falar contigo. Convido-te a cear no Ginjal … até pode ser que apareça qualquer coisa que se coma sem ser à mesa … e depois da ceia ainda sobra muita noite …

O problema do Castro era fácil de expor mas talvez difícil de resolver: Ainda estava no liceu e faltava-lhe fazer Matemática e Físico-Químicas que frequentava pela terceira vez, pelo que a família se recusava a pagar-lhe explicações e ameaçava mesmo cortar-lhe a colecta por completo e mandá-lo trabalhar. Ora ele bem tinha visto como eu me desenrascara àquelas disciplinas e até sabia que eu dava explicações e que um par de miúdos, agora seus colegas, se estava a safar bem com elas. O que ele queria era que eu o ajudasse a um preço suportável pela mesada de que dispunha ainda que tivesse de lhe abrir um crédito a liquidar depois da aprovação.

- “Tu és é maluco” disse-lhe eu. Então eu ia levar dinheiro a um compincha de tanta farra … e espero que de muitas outras agora que nos tornamos a encontrar … era o que faltava! Em todo o caso devo dizer-te que exijo contrapartidas porque sou muito cioso dos meus bons resultados…tens de me garantir que me apareces uma hora, todos os dias de segunda a sábado, pode ser às sete da tarde… e que fazes os exercícios que te der. Com menos do que isso não é possível garantir o teu sucesso … e o meu … e mesmo assim …

O Castro excedeu-se em agradecimentos e juras de amizade eterna, disse que sabia que eu o ia ajudar como se fosse um irmão, até passar à recordação de episódios divertidos que partilhámos nas aulas e fora delas, sobretudo fora delas. Estávamos a beber um bagaço para fazer a digestão quando, assumindo um ar compenetrado, o Castro afirmou: - “Não é para te pagar por não me quereres levar dinheiro, de qualquer maneira ia-te contar … lembras-te da Fernanda, a que mora em frente ao liceu? Agora é puta … “Estás a palpitar ou é mesmo?” inquiri, dubitativo. “Estou-te a contar porque já lá fui e tenho aqui o telefone e o que tens de dizer para marcar a visita; ela não atende sem marcação. Leva caro mas vale a pena porque é mesmo boa … deves-te lembrar…

Dito isto o Castro rasgou um canto da toalha de papel, copiou o número de telefone que tinha na carteira e acrescentou-lhe a indicação da “senha” e até o preço; depois estendeu-mo com a solenidade de quem entrega um diploma.

Não demorei muito tempo a verificar a exactidão da notícia do Castro. Na verdade telefonei logo no domingo de manhã e marquei visita para as duas e meia da tarde. Almocei, liguei à minha namorada a dizer que só podia ir ao cinema com ela às seis porque tinha uma explicação às três e meia e fui comprar um saquinho de bombons para lhe dar no cinema e aplacar o protesto por só lhe dedicar o fim da tarde.

O encontro, para mim emocionante, correu de forma diferente daquela a que estava habituado. A Fernanda manteve o ar sereno e imperturbável que lhe conhecia, não me apressou como era corrente naquele negócio e foi muito carinhosa mas com o tipo de carinho com que se administra um medicamento a uma criança doente. Gostei de que ela não falasse durante o acto nem fizesse fitas de falso prazer, a que também estava habituado e supinamente me irritavam a ponto de quase me fazerem perder a erecção. No fim ela disse-me que se lembrava de me ver passar por ali, o que me causou uma sensação agradável, como se me afagasse o ego e perguntou-me se eu ainda andava no liceu. Disse-lhe que acabara o ensino secundário no ano em que o marido morrera, para evidenciar que há muito lhe prestava atenção, e que agora estava em engenharia, mas logo a seguir inquietou-me que achasse a referência de mau gosto ou que ela a entristecesse; não observei porém qualquer reacção. Despedi-me dizendo que tornaria a telefonar logo que pudesse quando ela pegou no saquinho de bombons que eu tinha esquecido na cadeira onde pousara a roupa, e estendeu a mão para mo entregar.

- “São para ti” menti eu com um leve complexo de culpa em relação à minha namorada, “não tos entreguei antes por distracção” . “É muito simpático da tua parte, obrigada; mas então fica mais um bocadinho a comê-los comigo…com um cálice de Porto que diz bem com eles…

Recusei, dizendo que não podia mas não faltariam ocasiões, por medo de não chegar a tempo de ir buscar a minha namorada para a prometida sessão de cinema, mas cheio de vontade de aceitar o convite.

De facto as ocasiões não faltaram. Gastei praticamente todo o dinheiro que ganhava, com as explicações, em visitas à Fernanda; levava-lhe sempre uma guloseima, ou chocolates ou bolos ou latinhas de paté de que ela gostava e ficávamos depois à conversa saboreando a minha oferta acompanhada do que a Fernanda servia, às vezes chá, outras vezes vinho ou um cálice de Porto. Ela dizia que eu era o único conhecido dela – creio que se referia principalmente aos clientes – com quem se podia conversar, interessava-se pela minha vida e pelos meus projectos de futuro e foi-me contando ao longo do tempo tudo o que da sua vida lhe fui perguntando. Foi assim que soube que era filha de uma costureira que se considerava a modista da aldeia, perto de Guimarães, que não conhecera o pai, que só tinha feito a quarta classe da instrução primária. Depois disso ajudava a mãe nas entregas e na recepção das clientes por não ter jeito para a costura e gastava o tempo livre, que era muito, a ler tudo que conseguia. A mãe fazia-lhe vestidos lindíssimos por achar que a tornariam um melhor partido e de facto casara-a, era esse o termo, com um senhor que se dizia engenheiro têxtil e tinha aparecido na aldeia para falar com o dono de uma fábrica de tecidos de uma aldeia próxima na altura em que ela tinha ido entregar um vestido à dona da casa. O homem namorara mais a mãe que a ela e casaram-se numa modesta cerimónia à qual só comparecera, da parte dele, uma irmã residente em Lisboa, como única familiar do noivo e de quem nunca mais ouviu falar. Tinha vindo viver para o Porto para a casa que eu próprio agora frequentava, alugada a uma senhora de idade que morava próximo por uma renda barata e que não podia, por lei da época, ser alterada. O marido não lhe dava muito dinheiro para o governo da casa mas mesmo assim ela foi poupando algum que pôs numa conta no Montepio sem que ele o soubesse. Na compra de roupas, em cosmética e no cabeleireiro nunca se tinha mostrado avarento, e ia com ela muitas vezes às melhores lojas ajudá-la a escolher os vestidos. Estas coisas, e outras foi-mas ela contando, com muito mais pormenor à medida que aumentava a minha permanência junto dela depois … do que se calcula. Cheguei inclusivamente a ir com ela ao cinema, à semana por ser menos provável encontrar gente conhecida e muitas foram as vezes que dormi com ela só saindo no dia seguinte de manhã cedo. Em duas ou três vezes que o Castro me perguntou “já lá foste … à Fernanda?” menti-lhe para não me descair sobre aquela “monogamia” patológica. À medida que me ia tornando mas íntimo aguçava-se-me a curiosidade sobre a passagem à actividade a que agora se dedicava e um dia perguntei-lho directamente.

- “Foi por instinto de sobrevivência” disse ela como se falasse de outra pessoa. “Foi com as minhas economias que paguei o funeral do Elói … do meu marido … e a renda de casa … e tudo o resto. A minha mãe já tinha morrido há muito e não me deixou nada, tal e qual como o Elói. Dei voltas à cabeça a pensar no que havia de fazer e … nada. Estava a ficar maluca por ver que só teria dinheiro para mais dois ou três meses quando, numa manhã à vinda das compras para a casa, um miúdo com ar muito atrevido parou à minha frente e me disse: que lindas mamas! De dentro de mim alguém respondeu com a minha voz: se tiveres aí cem escudos deixo-tas ver… Ele meteu a mão no bolso das calças, tirou de lá umas notas amarrotadas, separou uma de cem e estendeu-ma. Levei-o para casa, cumpri a minha parte da promessa e quando ia a tirar-lhe as calças ele … acabou. Limpei-lhe a nódoa que deixou nas calças, disse-lhe que não tornasse a falar-me na rua, dei-lhe o meu número de telefone e o que havia de dizer se quisesse tornar a aparecer e ele saiu. Nunca mais apareceu mas logo no dia seguinte recebi um telefonema, de um outro, com as indicações que eu tinha dado a marcar uma visita … e depois nunca mais parou… rapazes daqui do liceu … e doutros … e dos colégios… alguns que eu sei que são da Faculdade de Farmácia … vejo-os da minha janela a entrar e a sair de lá …

Disse-lhe que pensava que o marido devia ter muito dinheiro para manter o modo como se vestia, como é que não lhe tinha deixado nada, porque é que o amante, o Navarro, teria deixado de sair com ela ou até de a sustentar depois da morte do marido, enfim como é que ela ficara tão ao abandono …

- Nunca falei disto com ninguém, mesmo ninguém e tenho a certeza de que não vais acreditar … mas até me vai saber bem desabafar.

Protestei logo dizendo que não havia razão para não acreditar porque nem sequer via que ela tivesse qualquer motivo para me mentir e ela continuou:

- Dos negócios ou do trabalho do Elói só soube o que ele me contava e era pouco. Pensava que tinha negócios com fábricas de tecidos e não um emprego porque não tinha horas certas de chegada ou para sair de casa e fazia e recebia muitos telefonemas, via-se que percebia de tecidos quando ia às compras comigo… Pouco tempo depois de casarmos ele anunciou-me que estava a trabalhar para a fábrica do Navarro, eu perguntei-lhe se estava lá empregado e ele disse-me que era como se estivesse. O Navarro começou a aparecer cá em casa e convidava-nos muitas vezes para jantar em bons restaurantes, para ir ao teatro ou ao cinema …

- Foi assim que te tornaste amante do patrão do teu marido …

- Não vais acreditar. Nunca fui. Houve um dia em que saí para ir ver a minha mãe à aldeia, já ela estava mal de saúde e de dinheiro, fui a pé até à estação, a S. Bento, e só lá é que vi que não tinha o porta-moedas. Voltei para casa, tinha de adiar a visita, e quando abri a porta da sala de estar, a que fica ao fundo do corredor, dei com o Elói e o Navarro, ambos nus, o Elói sentado no sofá e o Navarro de joelhos em frente dele a … olha … a chupá-lo! Fechei a porta e saí de casa. Andei pela rua desnorteada tempos infindos sem saber o que pensar ou que fazer. Quando voltei para casa, não havia outro remédio, não estava lá ninguém, nem sinais de lá ter estado. Ao fim da tarde o Elói entrou em casa como se nada se tivesse passado.

- E que lhe disseste tu? E ele a ti?

- Nada! Não sabendo que dizer o melhor é não dizer nada. Ainda falámos menos do que o costume mas nada mais. Na noite seguinte, depois de nos deitarmos, ele veio para cima de mim, o que estava a ser cada vez mais raro e a vida continuou como dantes … No princípio da semana seguinte vieram entregar-me a casa o meu primeiro casaco de peles com um bilhete do Elói a dizer: acho que te fica bem e o Navarro é da mesma opinião. Não sei quem o pagou mas penso que o ganhei com o meu silêncio. E não me considero agora mais puta do que naquela ocasião.

Ainda hoje não consigo perceber porque é que aquela história me deixou um tão grande mal-estar. Fosse devido a essa estranha sensação ou ao esgotamento da minha curiosidade, fosse porque os jogos eróticos com a minha namorada se estavam a tornar mais gratificantes deixei de visitar a Fernanda e nunca mais a vi ou soube o que quer que fosse dessa musa da minha juventude.