Memórias de um dia fúnebre

Novamente acordou aborrecido, olhou-se no espelho e, mais uma vez, a imagem estava destorcida, e o sol que lá fora se apresentava abençoado a ele estava acinzentado, parecendo o céu em dias de chuvas constantes. Escovou os dentes que estavam um pouco amarelados por seu desânimo, que o colocava em desconforto constante, não se lembrava há quanto tempo havia se desleixado. A escova fazia movimentos irregulares e rápidos, o que lhe importava era o gosto do creme dental, a limpeza era apenas um detalhe nada importante. Olhou ao espelho por mais alguns segundos e não entendia o porquê aquela nuvem que não saia de sua face. Por que estava tão acinzentado quanto o céu e o sol? Mesmo embaçado e embaraçado precisava continuar o dia e tinha que trabalhar com sua imagem de alguma forma. Escovou os cabelos que eram curtos, e muito pretos (coloridos) notava uma queda anormal e contava os fios que entrelaçavam na escova e os que voavam ao vento do secador. Não se preocupava com a calvície, era homem mesmo e seria normal para algumas pessoas um homem jovem careca. Estava, mais uma vez, atrasado e precisava tomar seu café da manhã, mas a sensação de náusea contínua não o convidava. O pão tinha cheiro de roupas sujas, o leite parecia ter sido regurgitado por um bebê e as frutas da mesa eram como alimentos em putrefação. Olhou para aquela cozinha e ficou deprimido com o visual sujo e desorganizado daquele ambiente e como cheirava mal.

Por que ouço estas vozes ao fundo me dizendo coisas deprimentes? Eu preciso entender que não há nada a ser mudado, estou condenado pela situação que eu mesmo me coloquei e que ninguém é culpado, além de mim. Mas tenho medo do olhar crítico, tenho medo do vizinho descendo a escada e mesmo sem saber de nada me olha como... Olhos para um condenado. Essa gente não sabe cuidar da própria vida e tem mais, aponta o dedo todo o tempo para os outros e mal se preocupa se vão feri-los. Eu tenho medo do dedo na minha cara, tenho medo da pobreza e vazio em que me encontro, nem tenho um milhão de reais para tentar salvar minha insignificante vida, também de que adiantaria este dinheiro todo se ele não levaria embora a exaustão do meu físico, quando eu precisasse.

Virou as costas para o apartamento fétido e impregnado por grandes decepções, pela cólera de suas escolhas, pela mancha de seu passado abrupto e vergonhoso, precisava de forças para enfrentar o dia de trabalho, ele ainda continuava acinzentado. Abriu a porta. Fechou a porta. Olhou para baixo e lembrou-se que aquele era um tênis que usava há muitos dias, quem sabe meses sem lavar, e que talvez alguém percebesse naquele seu local de trabalho cheio de gente limpa somente pelo sabão, o odor desagradável que aquele calçado estava exalando. Deu de ombros. Desceu as escadas e, no meio delas, percebeu a bromidose, usou um desodorante de costume que tinha na mochila para disfarçar o mau cheiro das axilas. Lembrou-se que a camiseta também estava sem lavar e o cheiro ruim era impregnação e não somente a falta do banho matinal ou do perfume essencial. Terminou de descer as escadas. Abriu o portão frontal do prédio, olhou a rua como quem olha uma paisagem morta na mata atlântica.

Tenho que subir esta rua de cabeça erguida, mas porque este vizinho me interpela com olhos tão curiosos? Eu nunca olhei para ele desta forma, nem me preocupo se ele está ali presente ou não. Tenho medo de seu olhar, mas nem sei o porquê, sou tão digno quanto ele, pelo menos era assim que me sentia quando não havia esta nuvem cinza na minha frente. Meu Deus! Outra vizinha. E esta cochicha algo para a amiga que está do lado. Acho melhor abaixar a minha cabeça, assim não terei que interpretar o olhar delas para minha direção. Ouço-as rindo. Parece que falam de mim. Será que minha situação também é engraçada, além de trágica? Vou continuar subindo a rua de cabeça baixa, melhor para não sofrer tiros de olhares. Mesmo assim escuto risos, eles também são desafiadores.

Subiu a rua como um cão sarnento sendo apedrejado por quem quer que esteja em seu trajeto. Acelerou os passos, pois os risos se misturavam agora com choros intensos e gritos de tristeza demasiada. Estava enternecido com tantas vozes, gritos, risos e choros que não percebia o trânsito tumultuado da cidade, os carros nem pareciam ter a força destruidora sobre seus ossos, ele os atravessava sem esperar o sinal para o pedestre se abrir. Se fosse atropelado pelo menos acabaria com tanto barulho em sua mente. Seguiu para o trabalho. Parou de frente a uma vitrine e observou um aparelho eletrônico que muito almejara comprar, pensou que ele também poderia estar funcionando a 14.800 watz, como aquele som luxuoso. Ele estava desligado e sua voltagem era quase zero. Não sabia como ainda caminhava com as próprias pernas. Estava sendo empurrado por algum deus talvez. Pensando nisso, lembrou-se de todas as leituras que havia feito da Bíblia e que todo Ensinamento do Livro Sagrado era apenas conhecimento inútil. Estudos chamam de “conhecimento inútil” tudo aquilo que se sabe, mas que não tem valor prático ou útil. Lembrou-se de um trecho em Jeremias 17:5, que dizia: “Assim diz o SENHOR: Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do SENHOR!” Lamentou não tê-lo praticado. Graças a sua atitude burra se encontrava na situação de demência constante.

Minha cabeça está doendo e tenho que aguentar mais um dia naquele trabalho cheio de gente fútil, porém rica. Queria que a riqueza deles salvasse minha alma condenada. Gente feia, todos cheios de artifício, tudo para disfarçar o mau caráter, a falta de decência e a índole fedorenta que carregavam. Eu estou farto daquilo tudo, quanto mais me aborreço, mais me afundo na depressão do meu viver. Parece que atravessei um oceano e nunca chego no trabalho; e pior, ainda ouço vozes, risos, gritos e choros. Queria desligar o fusível que fazia aquilo tudo acontecer. Se em uma colmeia forem vinte e quatro horas assim, talvez as abelhas sejam todas loucas. Será que estou louco?

Chegou! Estava em frente ao seu local de trabalho. O luxo cheirava a lixo. Ele desejou tanto aquilo e esqueceu que o preço das realizações nem sempre são positivas, mas no caso dele, era positivo. Suas frustrações eram verdadeiras e suas tristezas eram como chagas. Ficou um tempo considerável parado ali, estático. Decidiu entrar e entrou. Desejou bom dia a sua equipe de trabalho. Sua vontade real era mandar que todos fossem para o inferno, até mesmo para que pudessem experimentar um pouco de suas sensações ofegantes. Uma colega de trabalho se aproximou e lhe fez uma crítica dizendo que sua aparência estava abatida. Não se sentiu depreciado com o comentário. Realmente estava fisicamente abalado, e tanto seu exterior quanto seu interior estava em estado de degradação. A chefa se aproximou e o observou por um instante, passou-lhe os olhos de cima a baixo. Ele odiava a imagem daquela mulher bem sucedida, bonita, de postura refinada, elegante, bem penteada, com andar personificado à sua inteligência. Ele sentiu a pontada da inveja, todos os dias ao encará-la ele tinha aquela mesma sensação, se perguntava o porquê ela mandava e ele não. Por que ela era tão poderosa e a ele só cabia parecer uma sombra substituível.

Eu não suporto mais este lugar, estas pessoas, estes instrumentos de trabalho barulhentos. Já estou com muitos ruídos na cabeça. E depois que este lugar ganhou o tom cinza de minha estância, sinto-me mais angustiado. Tenho a impressão que estou prestes a explodir e que germes gigantes vão voar desta explosão. Preciso ir ao banheiro, ele tem sido meu refúgio nos momentos de abalo sociável. Minha bexiga estava muito cheia, tanto quanto eu. A diferença é que ela eu podia esvaziar num ato espontâneo e minha mente e morte, não. Eu recebia a sensação de alívio ao sentir a urina passar pelo canal da uretra. Pensei como seria bom se houvesse um canal para eliminar as sensações ruins da alma. Estranho, minha genitália é esquisita, tenho um saco escrotal enorme, fora do normal, o corpo de meu membro é pequeno demais e fino como nenhum outro é, além do mais é torto e excedia por demais em prepúcio. Tinha raiva por ter um órgão como aquele. Quantas vezes ele me causou vergonha, muito mais que prazer. Se não fosse minha imagem monstro, eu o cortaria e faria uma vagina. É melhor guardar este sapo mal formado, ele fica melhor dentro da cueca, pelo menos este saco inútil faz volume e causa uma falsa impressão. Na calça ele fica até bonito, nunca deveria sair dela.

Voltou para o seu espaço de trabalho e a cabeça pesava toneladas, não agüentava mais tanto sofrimento e, às vezes, tinha que sorrir para não ser desprezado o tempo todo. Passou os olhos pela sala de trabalho e teve que enfrentar o olhar de alguns de seus colegas reprovando sua presença. Sentiu-se, como em muitas ocasiões na vida, um rejeitado. Ele sabia que aquelas pessoas tinham o poder de destruí-lo mais rápido, ele não conseguia passar a elas uma imagem construtiva, mesmo que tentasse. Começou a passar flashes em rotação acelerada, ele não compreendia o que estava acontecendo. As imagens passavam tão ligeiramente que não havia como compreendê-las. As vozes estavam incompreensíveis como as imagens, pareciam um arquivo de áudio em rotação acelerada. Será que era o momento da explosão se aproximando? A cefaléia se multiplicava na velocidade daqueles flashes.

O que aconteceu? O que estou fazendo dentro desta caixa? O ambiente está fúnebre, mas voltou a sua velocidade normal, as pessoas estão chorando. Espere tem um grupo ali sorrindo. Será que estão contando uma piada? Estou imóvel. Por que não consigo mexer meus membros? Somente meu cérebro parece funcionar. Que cheiro é este que sinto agora? Parece uma mistura de bunda suada com flores murchas e velas queimando. Quem é esta mulher abatida com olhos inchados debruçada sobre esta caixa que me envolve? Espere, é minha mãe. O que ela está fazendo? Que bom, ela está onde eu sempre quis... Perto de mim. Queria abraçá-la, mas estou sendo punido com esta paralisia. Estranho todas as minhas angústias, dores, amarguras... Mesmo os gritos, choros, risos... Todos desapareceram, sinto-me em paz. Espere! Quem é este homem que segura agora minha mãe e a afasta de mim? Tenho vontade gritar, mas não consigo. Que silêncio é este? Onde estão às pessoas que estavam em volta da caixa em que repouso? Quem é este homem com esta lasca de madeira na mão? O que ele está fazendo? Pare, não faça isso! Vai jogá-la em cima de mim.

Meu Deus que escuro é esse, não vejo mais nada.

Fechou os olhos para a escuridão. Era o momento glorioso de seu enterro e todas suas tristezas estavam sendo enterradas junto com seu corpo insignificante.

Valdir Lima
Enviado por Valdir Lima em 01/02/2011
Código do texto: T2766094
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