Cadeira-de-papai - Série Eu me lembro muito bem...
Eu me lembro muito bem da cadeira-de-papai do meu pai. Era confortável, larga, braços macios e ligeiramente inclinada. Acompanhando, tinha uma banqueta que também era macia, própria para colocar os pés.
Meu pai sempre sentava na poltrona de papai. Era a primeira coisa que fazia ao chegar da rua, carregando o cansaço da vida. Meu pai não era um homem de muitas palavras. Olhar atento, observava o mundo por cima dos óculos de grau.
Depois do jantar, sentava-se na poltrona para ver os folhetins televisivos. Um noveleiro de mão cheia, um fã incondicional de Balzac e Cia.
Eu me lembro muito bem que mal terminava o capítulo do dia, meu pai já cochilava na poltrona, vencido.
Era neste momento que eu me aproveitava do meu gigante e o transformava num boneco particular, penteando seu cabelo de tudo que era jeito. Meu pai nunca acordou com as estrepolias que eu fazia enquanto ele dormia.
Houve apenas uma vez em que cortei minhas fitas em pequenas tirinhas coloridas e fiz diminutos laços no seu cabelo baixo. Aí ele acordou, e não deu tempo de desfazer o penteado.
Meu pai não percebeu nada até ir ao banheiro e passar em frente ao espelho. Da sala só ouvi quando ele exclamou lá de dentro, espantado:
- Mas, filhinha!!!
Não havia raiva em sua voz, talvez apenas certo lamento e conformação, mas não fui reprimida e continuei fazendo dele meu boneco predileto na infância.
Eu me lembro muito bem de sua figura amorosamente seca, mas que muito me ensinou.
O tempo passou.
O mato cresceu.
A cadeira não existe mais.
Papai já não está por perto.
A vida é assim.
Crescer é aprender a lidar com as lembranças, frustrações e saudades.
O poeta já disse: “Mas como dói”.
É verdade.