MARIA MULHER MORTA
Maria era uma mulher, uma simples mulher.
Era uma pena que esse aspecto de sua vida, o de ser mulher, era apenas uma lembrança vaga. Ah, sim, ela era mãe, esposa, dona de casa, mas mulher não. Era uma coisa morta esse fato de ser mulher. Ser mulher estava nela, mas ela não podia exercer plenamente essa condição que a natureza lhe impôs.
A vida seguia. Levava Maria junto.
Maria envelhecia, olhava para os anos, antes vagarosos, agora demasiadamente rápidos passarem por ela. Já não tinha a mesma forma física, não exibia o mesmo vigor, a saúde por vezes lhe faltava e ela contemplava ressabiada aquela porção já considerável de anos que tinha vivido.
Mesmo assim, ainda era jovem. Experiente e jovem ao mesmo tempo, uma balzaquiana perfeita, com direito a todos os conflitos próprios e os impróprios das balzaquianas.
Sim, ela era jovem, restava-lhe uma vida, pequena, incipiente, mas uma chama de vida, num coração que mesmo trôpego pulsava. E principalmente havia uma corrente louca de hormônios que se espalhava pelo seu corpo, todo o corpo.
Malditos hormônios!
Não sobrava nada de seu corpo que não fosse invadido pela enxurrada de hormônios, eles eram terríveis, entravam em todos os espaços. Era começarem a correr e Maria já sentia que viria as sessões de angústia, choro e tristeza.
Sim, porque toda a vez que os hormônios fanfarrões decidiam que iam fazer sua algazarra, Maria lembrava-se de que era mulher, a parte falecida da sua vida.
Ser mãe era uma obrigação, dona de casa mais ainda, esposa zelosa e dedicada vá lá, mas mulher? Quem ela achava que era para ter esse direito?
Não sei.
Sei que quando havia a farra dos hormônios, Maria sentia uma angústia muito grande, tremenda. O corpo era um mal estar completo; calores intensos, lágrimas repentinas, sensação de impotência, de fracasso e uma carência tão grande quanto o Cristo Redentor; mas com os braços fechados porque não estava autorizada a receber ninguém.
Maria percebeu-se sensível entre brucutus, gente mesquinha e medíocre; como ela que era praticamente uma princesa havia se entregado a uma gente tão pequena?
Doía muito toda essa festa hormonal do seu corpo porque tinha que recalcar tudo isso. Não tinha onde descontar os efeitos da fúria hormonal. Já estava com os dedos calejados de tanto uso.
Maria era dura, não queria ser uma mulher qualquer, uma superficial de esquina; era mulher honrada. Queria inteireza nas coisas, corpo sim, pele sim, lábios sim, tudo isso e muito mais, sim, sim, sim! Mas com dignidade.
Não abria mão da dignidade, e seu conflito maior era este: prazer ou dignidade?
Maria mulher queria ressurgir, queria muito, seu corpo pedia a ela isso. De fato, o corpo, a palavra é mais intensa, o corpo clamava por corpo, o baixo ventre sempre a pulsar, a incomodar, o mal estar das necessidades negligenciadas...
Maria mulher.
Às vezes a vontade de matar a mulher de uma vez por todas era de verdade. Um dia ela ficaria séria e se atiraria, por exemplo, debaixo do metrô ou cortaria os pulsos, não sei.
Maria era uma mulher morta.