DEUS DÁ UM JEITO.

Parece que vai chover. Olho pra todo direção o dono da casa aparenta preocupação. O céu está escuro, pesado, assustador. O ar está diferente, elétrico. Tenho a sensação que posso tocá-lo. Estendo o olhar e o que posso perceber é que tudo está cinzento, chuvoso, tenebroso. Um clarão anuncia a descarga que está por vir. Um estampido faz tremer as panelas e o zinco que cobre a área de serviço. O cão dá um gemido demonstrando o terror que sente. Enquanto isso, os moleques agarram a saia da mãe choramingando baixinho. Estou com medo, mas não posso demonstrá-lo; ser fraco agora é desistir antes da luta.

Começou a chover. Olho agora para dentro da casa. Procuro rachaduras; apuro os ouvidos, procuro ouvir algum estalo; sinto balançar o chão. Outro trovão ressoa com força. Vou até a janela, preciso espiar a rua. Rua? Isso não é uma rua! A rua virou um rio. Estou no Rio ou em Veneza? Apesar do cansaço preciso ficar alerta. As crianças não querem dormir. Também como poderiam? Parecem traumatizadas. De olhos arregalados aguardam meu sinal. Elas sabem que terão que ser fortes, corajosas, e botar as canelas pra correr na hora que eu disser: Corram!

Minha companheira, mulher de todos os trancos, chora em silêncio. Pelo seu semblante cabisbaixo e lábios apertados percebo que está com medo, mas continua consolando as crianças... Disfarçadamente providencia uma xique-xique e vai colocando algumas peças de roupa. Pega os documentos e enrola-os bem num plástico. Decide colocá-los no peito, sente que é mais seguro. Se morrer, morre com eles. Se deixar na xique-xique sabe que a força da água pode fazê-la botar tudo a perder. Levanta a cabeça e recebe a aprovação de seu companheiro que está de prontidão à janela da casa. Casa? Pra muitos não seria, mas pra eles é um palácio escancarado à beira de um precipício. Chove fora, pinga copiosamente dentro, mas pelo menos não pagam aluguel, podem dormir sob um teto esburacado (uma mistura de Brasilit, zinco, tábua e plástico). Ela vai até a cozinha, de lá trás um caixa de fósforos e algumas velas...

A chuva não para. Vou até ao quintal pegar meu vira-lata e o gato das crianças. Procuro a galinha pedrês e descubro que a dita resolveu se empoleirar no galho mais alto. Essa vai ter que ficar. A chuva mostra pra que veio. Ouço um pedido de socorro. Um estrondo que não é de trovão. Corro pra dentro de casa e grito com todas as forças:

- Mulher, pega as crianças! Vamos sair agora se não morreremos todos!!!

A água está subindo muito rápido. Olho pra meus tesouros e abraço um por um. Beijo a cabeça da minha companheira, fixo bem meu olhar naquele grupo que é minha vida, e a um simples gesto meu, todos saem correndo. Roupa, panela, gato e cachorro numa embrulhada que foge a qualquer explicação. Não há mais pelo que lutar. Só a vida é o que interessa... E o resto? O resto, Deus dá um jeito...

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 20/01/2011
Código do texto: T2740515
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