No cabo da enchada
O cabo da enchada calejava as mãos e o sol acentuava as marcas de expressão que ornavam-lhe a testa. Era necessário. Ao final de cada dia tinha que levar o sustento para casa. Não era grande coisa. Pequena, de taipa, com janela e porta de madeira e os fundos levavam a um pequeno terreiro que abrigava as magras galinhas. O saldo daquele dia não foi o necessário para alimentar a todos. Apanhou com o chicote dos jumentos. Antes dos 25 seria o mais velho de uma família de 16 irmãos e, naquele ano, com apenas 8, não podia agradar o patriarca da família e levava as marcas da desaprovação consigo, fincadas pelo corpo.
Aos 17 fugiu de casa. A rebeldia da adolescência não foi o estopim, mas sim a sede de aprender. O rapaz queria terminar os estudos e partiu sem rumo deixando a família que tanto amava para trás e as pilhas de livros que, sem ele, serviriam apenas como peso para porta naquela casa de semianalfabetos. Às vezes ele pensava não pertencer àquela família não fosse o enorme amor que transbordava em seu peito por todos aqueles pirralhos e por seus pais que não aguentou ver separados.
A vida na cidade foi difícil. Moradia apenas de casa em casa dos amigos que fazia nos bares. Aprendeu a fumar para enganar o frio e a beber para enganar a dor da alma. Foi em um desses bares, ao comprar o velho cigarro, que conheceu a bela loira de olhos verdes que tanto lembrava sua mãe.
O namoro não tardou a começar e, com a ajuda dos pais da garota - quase seus pais também - terminou os estudos e fez um curso de ciências contábeis. Não era o bastante. O rapaz era um gênio para os números, mas o que amava mesmo eram as letras. As letras e a moça de pequenos olhos verdes.
Fugiu de novo. Dessa vez para casar longe da pompa que os eventos da época pediam. Àquela altura tinha um emprego estável e mandava dinheiro para pelo menos 7 de seus 16 irmãos. Foi traído pelo coração. Os irmãos o usavam como uma marionete. Antes do primeiro ano de casamento ele já era frio, endurecido pela enchada e pelas traições. Até o dia que conheceu outra mulher. Uma pequena bola de neve com grandes olhos verdes e cabelos negros.
Nunca quisera filhos e se viessem, teriam de ser homens. Doce engano que esvaiu-se diante da pequena. A amou como nunca amou ninguém, mas o coração tem caminhos que prega peças no próprio destino.
Quando a criança tinha apenas um ano, ele foi despedido e, a partir de então, o homem que tanto primara por sua educação e que tanto gostava de trabalhar, se viu sem chão. Nunca pensou sentir falta da roça...
Os anos passavam e os únicos empregos que ele, com idade avançada para o mercado de trabalho, conseguia eram escravos, tortuosos para um homem maduro. O álcool que entrou em sua vida como um passatempo, virou o melhor amigo. O único amigo.
Em casa ele e a mulher viraram estranhos sob o mesmo teto e a criança foi culpada pela mente fria daquele homem. Envelhecido, cansado, uma pedra de gelo, ninguém consguia suportar mais que 10 minutos em sua presença. A cada dia a vida o deixava mais só e menos feliz.
Distanciou-se da filha. Não saíam mais palavras doces de seus lábios secos e os abraços... nem lembrava a sensação de envolver os braços em alguém. A vida não fora fácil e o tempo o castigou. Pensava que felicidade era um adorno que os ricos compravam facilmente, mas que era impossível consegui-la de graça.
Até que a viu. A criança cresceu com sede por leitura, a mesma inerente a ele, e ávida por saber. Uma vontade congratulada com um canudo conseguido com o esforço que ele nem lembrava existir.
Não conseguiu chorar, já não mais podia, mas naquele momento sentiu a maior felicidade do mundo. Enfim, ele havia feito algo certo.